LENDA DE ALMACEDA
Almaceda é uma pequena povoação ali para as bandas de Castelo Branco. Há muito tempo atrás, nos terrenos onde hoje se situa esta povoação, não existia casa alguma. o lugar nasceu exactamente da estranha história que vou contar.
Pois aquela região era despovoada. Por vezes, porém, o sossego da terra era quebrado pelas correrias de
D. Rodrigo, a cavalo na sua montada preferida. D. Rodrigo era um fidalgo, muito jovem e rico, que cedo ficara orfão. No castelo, rodeado de criados, tinha apenas por companhia sua irmã Madalena. E D. Rodrigo aborrecia-se; por isso se lançava à desfilada por aqueles campos fora, tentando quebrar aquela monotonia insuportável. Pela alva e pelo cair da noite, sempre que não chovia, D. Rodrigo partia a inventar na sua cavalgada uma aventura sempre nova e emocionante.
Certa manhã de Março, Rodrigo e Madalena montaram os seus cavalos, acabara o sol os seus preparativos
matinais. Não muito longe de casa, D. Rodrigo sopeou bruscamente a montada, olhando fixamente um ponto não muito longínquo. Madalena, que seguia distraída naquele seu prazer de cavalgar, acabou por sentir a falta do irmão, e vendo-o parado mais atrás, deu meia volta e veio estacar junto dele:
- Que estás a ver? - indagou curiosa.
O outro sorriu:
- Estou a sonhar ou ali à frente, ao pé daquele arbusto, está uma caveira?!
- Rodrigo, mas que brincadeira a tua!... Fico com medo!...
- Nao estou a brincar. Olha bem!. ..
- Sim... parece ... - dizia Madalena, com o coração em pânico a querer saltar-lhe para fora.
- Anda dai! Vamos cumprimentar a caveira!
- Nao, Rodrigo! Tenho medo!. .. Tem respeito!. ..
- Ora ... tonta! - riu Rodrigo, divertido com a ideia de ir tirar o barrete aquela caveira inesperada.
Mas Madalena empalideceu ainda mais, demonstrando um verdadeiro incómodo por tudo aquilo. Uma aflição enorme tomara conta de si e a boca secara--se-lhe.
- Nao gosto destas brincadeiras! Vou-me embora já! ....
- Grande medrosa! Nem pareces minha irmã, rapariga! Nao vês que é só uma caveira que ali está?
Que mal te poderá fazer?!
- ... mas donde terá vindo, meu Deus! ...
- Do cemitério, claro! Veio dar urn passeiozinho. Devia estar aborrecida.
Como louca, Madalena gritou para o irmão:
- Acaba já com isso!!
- Ó Madalena, que disparate todo esse medo! - disse Rodrigo, rindo mansamente para ver se acalmava
aquele pavor em que via a irmã. - Entao não sabes que aquilo são apenas ossos do corpo humano?!
Madalena, porém, estava fora de si e continuou gritando com pânico na voz:
- Já sei, já sei! Vamos embora! Quero ir-me embora! Embora!. ..
- Está bem, vamos embora. Mas, antes, manda a boa educação que se dêem os bons-dias à caveira.
- Não, Rodrigo! Não!!
Irritado com a irmã, Rodrigo decidiu então, em tom de brincadeira leve:
- E já agora, se a pobre saiu do cemitério por estar aborrecida, vou dizer-lhe que moro aqui perto e que me aborreço tambem. Vou convidá-la para jantar connosco hoje!
Sem aguentar, Madalena esporeou o cavalo e sem mais resposta partiu a galope para o castelo, chorando
aflitíssima, acompanhada pelas gargalhadas de Rodrigo, que ficara parado no mesmo sitio.Mas, ainda a rapariga não desaparecera, Rodrigo ouviu de súbito uma voz rouca e profunda vinda não se sabe bem de onde:
- Cavaleiro! Não quero de modo nenhum ser deselegante. Se te diverte, podes ter a certeza de que não
faltarei ao teu jantar de hoje! ...
Secou-se o gargalhar alegre de Rodrigo. Olhou em volta e não viu ninguém, apenas a caveira ainda estava
no mesmo local, impávida, e a irmã galopava lá ao longe. Os olhos prenderam-se-lhe nos ossos brancos e
brilhantes ao sol límpido da Primavera. Um medo absurdo desceu sobre ele, lentamente. Inexplicavelmente.
Que fizera, Deus, que fizera?! E a voz, quem era, donde viera?!
Impossivel saber quanto tempo ali ficou pregado ao chão, olhando a caveira descansada. De súbito, esporeou o cavalo e partiu semilouco de medo para um mosteiro que existia por ali perto. Contou tudo e ficou urn pouco melhor. Porém, a inquietação nao o deixava, pegara-se-lhe ao corpo como a humidade de certos dias abafados. Os frades, sem saberem muito bem o que fazer, deram-lhe uma cruz: que a pusesse ao peito; isso o protegeria do Diabo ...
E, mais reconfortado, Rodrigo voltou para o castelo, onde a irmã o aguardava completamente apavorada.
Ao vê-lo entrar, Madalena correu a abraçá-lo,quase aliviada:
- Demoraste tanto!... São quase horas de jantar, e eu com tanto medo! ...
- Acalma-te que tudo vai correr bem. Estive no convento e o irmão Gregório deu-me esta cruz...
- Mas ... para quê?! - perguntou num espanto Madalena.
- Olha, se hoje vier algum estranho jantar connosco vamos recebê-lo como deve ser. Manda pôr outro talher na mesa que eu já avisei o José que vai bater à nossa porta alguém de muito estranho. E tu vais
comportar-te como se nada fosse, ouviste?!
Mas Madalena sentiu o medo crescer nela de novo e de súbito já não cabia no limite de si, nas paredes daquela casa.
- Tu... tu ... - gaguejou - pensas que ele virá? ... Oh! Não!! - gritou apavorada ao ver o sinal afirmativo
do irmão.
- Vai, vai para o teu quarto!... Hoje não ficas para jantar!
- Não! Posso morrer de medo mas prefiro estar aqui contigo! Que faria lá em cima sozinha e à espera?!
Pancadas surdas soaram pela casa fora, vindas da porta da rua. Sem pinta de sangue, Rodrigo sorriu um sorriso forçado e torcido:
- Eis o nosso convidado! Pontual ...
- Persigna-te, meu irmão, comigo... Pelo sinal da santa Cruz, livre-nos Deus Nosso Senhor dos nossos ...
Um grito do criado que fora abrir a porta interrompeu a oração, enquanto uma voz arrastada, triste e
surda, dizia:
- Vai dizer ao teu senhor que sou o convidado desta noite!
Rodrigo, porém, que tudo ouviu, ordenou, com aparente segurança:
- Entre, por favor! Esperamo-lo. 0 seu talher está ao lado do meu.
Lentas e pesadas soaram as passadas do visitante pelo corredor e num instante apareceu à porta do salão um vulto sem rosto. Madalena caiu numa cadeira semidesmaiada de pavor e pânico. D. Rodrigo fez um esforço infinito para parecer calmo e apoiou-se à borda da mesa. Numa voz tremente mas cordial disse:
- Sente-se, por favor!
- Nao vim jantar contigo! Vim apenas buscar-te!
- Como?! - perguntou Rodrigo, empalidecendo.
- Quero que me acompanhes a minha casa! - dizia firme e cavernosamente o visitante, enquanto se ouviam
os murmúrios de Madalena:
- Meu Deus, não nos abandones, não nos abandones, não nos abandones. Tem piedade, Senhor, e não nos abandones.
- E onde mora? - inquiriu Rodrigo.
- Muito perto! Ali a igreja... Agora vem que sou eu quem te convida! Precisamos conversar!
- Nao vás, Rodrigo! Olha que é uma alma perdida! - gritou lancinante Madalena.
- Tens medo, fidalgo? - perguntou zombeteiro o visitante. - Tu, o valente aventureiro de tantas noites de orgia?!
- Não vás! - continuava Madalena num grito. - Manda-o embora, manda-o com Deus! Oh!, meu irmão!...
- Está calada!... Vou, tenho de ir. Não sentes a força que ele tem, nao vês como não me deixa recusar?! Ele quer que eu vá e eu quero ir!
Pegou na capa e saiu com o vulto sem rosto. Lá fora a noite nascera sem lua e os ares estavam povoados com os pios das aves nocturnas. Um peso enorme oprimia-lhe o peito, mas Rodrigo caminhava atrás do outro como se o fim daquela estrada fosse a finalidade da sua vida. Iam silenciosos e para além dos agouros nocturnos só os seus passos soavam. Chegaram à igreja sem que Rodrigo tivesse dado pelo caminho. Ai, porém, à porta do cemitério apenas vislumbrado, o cavaleiro estacou subitamente, como se tivesse sido tomado por uma vontade mais poderosa do que a do vulto sem rosto que o encaminhava. O relógio da torre badalava a meia-noite.
- Anda, entra na igreja comigo. Fomos pontuais!
Rodrigo estremeceu. Vacilava.
- Despacha-te! Nao há tempo a perder! - gritou o vulto, enervado de repente. - Esperam-me lá em baixo
e sabem que trago um companheiro! Anda!
Mas Rodrigo recuperara, estranhamente o sangue-frio e para ganhar tempo perguntou:
- Para onde me leva?
Uma gargalhada imensa repercutiu-se então pelos ares fazendo estremecer de horror o jovem:
- Vais conhecer o meu palácio. Vá, caminha - ordenou o vulto, empurrando Rodrigo suavemente para dentro da igreja. - Vês esta tumba aberta? Pois, é a minha casa ! Desce... vamos!. ..
Rodrigo, porém, sentindo que era a sua última oportunidade de reagir, soltou-se, enérgico, das teias do
vulto, replicando:
- Para que hei-de eu descer?
- Tens medo!??
- Nao, porquê? Quem foi sepultado na igreja não pode ser uma alma penada!... .
Uma outra gargalhada estridente respondeu à afirmação ingénua do rapaz, fazendo esvoaçar de pânico
as corujas abrigadas nos recônditos do templo.
- Palerma !... Tu e os que me enterraram aqui! Julgaram-me bom em vida mas só Deus sabia de mim...
de mim e dos meus pecados... Por isso Ele me condenou.
- Condenado? ...
- Sim! E como troçaste de mim agora vais descer para saber como se janta nos meus domínios!
Sentindo-se a perder terreno de novo, Rodrigo gritou:
- Não vou! Deus proíbe que me enterre vivo!
O vulto praguejou e disse:
- Se não fosse essa cruz que trazes ao peito, juro que descerias comigo! E lá em baixo sofrerias comigo o fogo redentor!...
-Que Deus me acuda! ... -rogou num murmúrio o fidalgo apavorado.
O vulto sem rosto acalmou de repente. E foi com voz mais branda que falou:
- Fui como tu um aventureiro sem escrúpulos e sem respeito pelas coisas sagradas. Urn homem fútil e leviano que se algum gesto caridoso teve, o teve por ostentação. Que a minha pena te seja um alerta! Cada vez que falares a algum corpo sem vida, lembra-te que a alma que o habitou pode necessitar de auxílio. Em
vez de escarnecer.. . reza ! Que a tua alma ceda à caridade e compaixão pelos mortos! Que a tua alma
ceda à verdade que te digo porque estou vendo já luz no meu caminho! Alguém reza por mim neste momento!... É... a tua irmã!... Vai, volta e não esqueças o que te disse: que a tua alma ceda e o orgulho que até hoje demonstraste se transmude em amor aos outros!...
A voz triste e surda deixou de ouvir-se. O vulto desaparecera pela campa aberta e a igreja era apenas
silêncio pesado. Semilouco, Rodrigo desatou a correr em direcção a casa. Corria e repetia sem cessar:
- Que a tua alma ceda! Que a tua alma ceda! Que...
Chegou à porta do castelo sem dar pelo caminho que pisara. Ia como que apático. Madalena esperava-o, rezando sem parar há muitas horas. Chorando de emoção, abraçou-o frenética mal o viu entrar:
- Graças a Deus! Graças a Deus, Rodrigo, que voltaste!
Que a tua alma ceda, que a tua alma ceda, foi a única resposta que obteve, as únicas palavras que Rodrigo durante muitos meses pronunciou. Que a tua alma ceda!
Tempos depois o fidalgo recompôs-se do choque brutal e aterrador daquela noite. Nessa altura o povo da região já o alcunhara de Almaceda, em virtude de ser a única coisa que lhe ouviram durante tantos meses.
Recuperado o juízo, Rodrigo reviu a sua vida passada e reorganizou-a em moldes diferentes. Distribuiu as suas vastas terras pelos pobres que lhe batiam à porta e passou a viver conforme a piedade cristã. Foram esses mesmos pobres, muitos deles caminheiros vindos de longe, que chamaram ao local onde construiram
os seus lares Torre de Almaceda. Com o tempo, passaram a denominar a localidade apenas por Almaceda, em memória daquele fidalgo que tanto os auxiliara.
Fernanda Frazão, Lendas Portuguesas