domingo, 3 de outubro de 2010

O Monstro de Aljubarrota



Há muito que os dois exércitos estavam frente a frente, sem que se decidissem a iniciar o ataque. O meio-dia tinha passado sobre o campo há muitas horas atrás. Os castelhanos eram muito superiores em número e contudo mantinham-se à torreira do sol, dentro de armaduras de ferro que mais pareciam fornalhas infernais, sem darem urn passo, sem fazerem urn gesto. Perguntar-se-á como é possivel que 22000 combatentes sejam capazes de esperar quase um dia inteiro de Verão frente a cerca de 7000 adversários, tão cansados de esperar quanto eles, tão cheios de sede e de calor. Assim aconteceu, porém, nesta batalha memorável, nos campos de Aljubarrota, no dia 14 de Agosto de 1385.

Conta a lenda que os invasores hesitavam em atacar por sentirem da parte do exército português uma serenidade quase sobrenatural. E, contudo, do outro lado, os portugueses sentiam apenas a mesma expectativa que antecede a batalha, a mesma sede que os castelhanos, o mesmo calor infernal que os invasores, o mesmo pânico interior.

Há horas, pois, que os dois exércitos estavam frente a frente, à espera de ordens para atacar. Passariam cinco horas depois do meio-dia quando os invasores se decidiram a atacar, depois de um imenso estrondo que transtornou de medo os combatentes de ambas as partes.

Feria-se dura a batalha. Os portugueses, entrincheirados nas suas posições, defendiam-se com denodo ante as cometidas furiosas dos castelhanos. Apesar da sua superioridade numérica, estes não conseguiam desfazer o quadrado que as gentes de D. João I haviam formado no terreno, e o desespero começava a nascer no coração dos invasores.

Diz-se que entretanto os castelhanos souberam que andava por entre as fragosidades do terreno uma fera horrorosa, um monstro infernal. Mandaram um grupo de homens procurá-la e trazê-la à tenda do Rei de Castela.

Nesse grupo de homens que partiu em busca do monstro dos infernos ia um famoso bruxo de Castela, lá das bandas de Toledo, para que com os seus sortilégios e conhecimentos diabólicos pudesse convencer ou compelir a fera a auxiliar o seu exército. Assim que o monstro foi achado no campo, o bruxo de Toledo fez sobre ele sinais cabalísticos, rezou em surdina misteriosos abracadabras e o bicho tornou-se num cordeirinho manso.

Levado à tenda do Rei de Castela, combinaram então com ele o modo como assustaria o inimigo, do outro lado do campo, e puseram-no em liberdade, depois de o bruxo o livrar da sua influência, invertendo os sinais que antes fizera e proferindo os abracadabras no sentido contrário.
 
Largaram a fera à frente do exército castelhano para que esta devorasse os portugueses. Estes, assombrados e tornados de terror pelos terriveis rugidos e pelo aspecto do monstro que deitava fogo pelos olhos e estilhaçava homens com as suas garras aguçadas, começaram a fugir como se uma legião infernal os perseguisse.

D. João I, também ele cheio de medo e desespero, lembrou-se de repente do seu patrono S. Jorge e, invocando-o cheio de fé, pediu a intervenção da Virgem Maria. Imediatamente se viu descer do céu, numa bola de fogo o santo, que, montando urn belíssimo cavalo branco e brandindo a sua lança, se precipitou sobre a fera. Durante um momento, o tempo que durou esta batalha entre o monstro e S. Jorge, não se ouviu um gemido em todo o campo; apenas os urros e rugidos do monstro e o bramar de S. Jorge alentando o seu cavalo se fizeram ouvir misturados com o silêncio da noite que vinha chegando.



S. Jorge derrubou a fera dos olhos em fogo, cravando neles a sua lança,e, em seguida, virou-se para os castelhanos e investiu contra eles desbaratando-Ihes as sólidas formações. Os portugueses, reanimados e de novo cheios de fé e coragem, avançaram com o Condestável à frente e completaram a destruição do inimigo, deixando no campo,por onde passavam, uma estrada de cadáveres e moribundos.

Estava ganha a batalha nessa mesma hora em que morria docemente o dia 14 de Agosto de 1385, um dia
que fora quente e duro. A lenda porém não termina com a chegada da noite. Diz ainda que, com os ossos dos castelhanos, os portugueses calcetaram uma rua em Aljubarrota, que já desapareceu com o uso. E acrescenta que em memória do socorro de S. Jorge, D. João I mandou edificar a ermida e fazer a imagem do santo, em pedra, a cavalo e matando o monstro.

Fernanda Frazão, Lendas Portuguesas
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