terça-feira, 30 de novembro de 2010

O Livro das Sombras

VIBRAÇÃO: chackra da coroa
PALAVRAS-CHAVE: experiência, descoberta, aceitação
PONTO ALTO: sabedoria adquirida por meio da experiência
PONTO BAIXO: não tenha medo de voltar ao seu eu verdadeiro

O Grimoire, ou Livro das Sombras, é o termo usado tradicionalmente para designar a "bíblia" pessoal dos bruxos, o lugar onde registam conhecimentos e experiências sagradas ou ocultas, encantamentos e fórmulas mágicas. O Livro das Sombras pode muito bem ter sido um dos primeiros tipos de diário pessoal.

As jornadas pelos nossos mundos interior e exterior proporcionam-nos capítulos inestimáveis no nosso Livro pessoal. Se aceitarmos as experiências que a vida nos apresenta, elas tornar-se-ão mestres que nos mostram os caminhos da sabedoria.

Ao conhecermo-nos a nós mesmos e às nossas possibilidades, faremos descobertas além da nossa imaginação. Quando atravessamos maus momentos, de "noite escura", é bom usar a nossa sabedoria, compreensão e aceitar a mudança. Já dizia o Poeta, "Tudo vale a pena quando a alma não é pequena".

EXERCÍCIO DE MAGIA: Fazer um Livro das Sombras

Compre um diário de boa qualidade - com folhas de papel de fibra natural e uma encadernação elegante -, no qual possa escrever as suas fórmulas mágicas, os seus segredos relacionados com o ocultismo, os seus encantamentos e amuletos. Registe passagens significativas da sua vida, sonhos e qualquer sincronicidade. Pode também colar no diário ramos de ervas e flores silvestres e anotar o seu significado mágico ou as suas propriedades terapêuticas.

domingo, 28 de novembro de 2010

O Voo das Bruxas

O Voo  das Bruxas, de Goya, 1797

Hora da Bruxa: Vento Perdido


Meredith Monk - Lost Wind

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Os Paços de D. Leonor



Diz-se que há muitos, muitos anos, ali na região de Peniche, existiam duas famílias riquíssimas que mutuamente se odiavam. A causa desse ódio talvez já não a lembrassem, mas o facto é que ele ia passando de geração em geração, como legado familiar.

Dizem que ódio velho não cansa, mas, a certa altura, este ódio sem razões entre as duas famílias cansou. Rodrigo, filho de uns, e Leonor, filha dos outros, apaixonaram-se. Durante alguns meses viveram o seu amor, plenamente, sem que as famílias tivessem conhecimento do que se passava.

Pela tarde, dirigiam-se a um abismo rochoso, frente ao mar, por um pequeno carreiro aberto pelos seus passos. Sentavam-se no alto do penhasco olhando o mar. Lá em baixo, as gaivotas ora planavam sobre a água prateada, ora picavam sobre as ondas, donde emergiam com um peixe no bico. O sol ia caindo sem melancolia, porque aquele ainda não era o tempo da melancolia. Rodrigo e Leonor estavam ali, atemporais, sendo eles mesmos o marulho das vagas contra a rocha, o piar quase aflitivo das gaivotas, o grito silencioso do sol morrendo no mar. Eles estavam e esperavam. Esperavam que o tempo viesse e apagasse dos seus microcosmos familiares o ódio velho e já sem história.

Enganaram-se, porém. Um dia, o pai de Rodrigo descobriu o que se passava. Furioso, mais por tudo se passar sem o seu consentimento e conhecimento do que pelo velho ódio familiar, obrigou o filho a recolher ao Mosteiro das Berlengas. Achou, contudo, que o castigo não era suficiente, e fê-lo entrar no noviciado da ordem.

Inconsolável ele, inconsolável ela! Que fazer, porém? E mais uma vez trataram de esperar pelo tempo, que abrandaria as iras.

Rodrigo decidiu que, entretanto, não deixaria de ver a sua Leonor - precisava vê-la e falar-lhe - todos os dias. Para isso iludiu os superiores do mosteiro e, em noites de antemão combinadas, saía do convento e dirigia-se a uma pequeníssima enseada onde o esperava um velho amigo pescador, com um bote. Embarcava e o pescador remava silenciosamente até à costa, em direcção ao cabo Carvoeiro, desembarcando num portinho a que chamam Carreiro de Joana, ou Joane.



 
Quando Rodrigo chegava, já Leonor o esperava. Recolhida numa gruta onde só se conseguia chegar na maré baixa, virada de frente para o lado donde viria Rodrigo, Leonor aguardava a passagem do batel para acender uma luz assinalando a sua presença.

Durante noites e noites, tiveram os dois amantes o seu encontro, até que, uma noite, a luz não se acendeu. Mas acendeu-se o grito no corpo de Rodrigo e estilhaçou-se contra as rochas vazias que lhe devolveram apenas farrapos do que fora, do que tinham sido, do que jamais seriam. Semienlouquecido pela suspeita, sondou o mar negro e viscoso. Junto ao barco passava qualquer coisa clara flutuando na escuridão. Rodrigo lançou o braço e, ao reconhecer a capa de Leonor, saltou-lhe o coração do peito, saltou o homem do barco, tentando abarcar no mar o corpo que não iria encontrar.

Contou o velho pescador que Rodrigo, depois de ter por resposta ao seu grito o silêncio, quando viu a capa a flutuar na água atirou-se ao mar e não mais voltou à superfície, sendo impossível valer-lhe.

E em terra, o que se passara? Leonor chegou à gruta como todas as outras noites, com antecedência e aproveitando a maré. Aguardava a passagem do batel quando ouviu vozes, que reconheceu serem a de seu pai e de seus irmãos, que a procuravam.Julgou-se descoberta e, antes que fosse vista, tentou fugir, ocultar-se. Saltou de rochedo em rochedo, precipitadamente. De repente, escorregou-lhe um pé, e debaixo dela abriu-se o abismo que a recebeu nos seus braços, tal como Rodrigo o faria.

Diz-se que, no dia seguinte, apareceram os cadáveres dos amantes. O de Leonor, entalado entre os penhascos que bordam aquele sítio. O de Rodrigo, levado pela corrente, num banco de rochas a sueste dos Remédios.

À gruta chamam Paços de D. Leonor, e aos rochedos onde apareceu o cadáver de Rodrigo, o sítio de Frei Rodrigo.

Fernanda Frazão, Lendas de Portugal

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Poema à Lua Cheia

NAUFRÁGIO

A rua cheia de luar
Lembrava uma noiva morta
Deitada no chão, à porta
De quem a não soube amar.

Já não passava ninguém...
Era um mundo abandonado...
E à janela, eu, tão Além,
Subia ressuscitado...

Vi-me o corpo morto, em cruz,
Debruçado lá no Fundo...
E a alma como uma luz
Dispersa em volta do mundo...

Mas, à tona do mar morto,
Um resto da caravela
Subia... E chegava ao porto
Com a aragem da janela...

Branquinho da Fonseca

domingo, 21 de novembro de 2010

Creepy



Creep (Radiohead) - Scala and Kolacny Brothers

sábado, 20 de novembro de 2010

O Corvo

VIBRAÇÃO: alma
PALAVRAS-CHAVE: conhecimento oculto, magia, maestria
PONTO ALTO: hora do despertar de dons ocultos
PONTO BAIXO: aspectos sombrios da alma exigem atenção

O Corvo, assim como a gralha e a pega, é um pássaro mágico, o guardião dos segredos ocultos que inspiram a alma. Associado à deusa negra, o Corvo também é o pássaro do rei celta Bran, o Abençoado, cuja cabeça está enterrada no local onde hoje existe a Torre de Londres. Segundo a lenda, quando os corvos deixarem de frequentar a Torre, a monarquia cairá.

Os corvos chegam quando os véus entre os nossos mundos estão mais ténues, dando-nos o dom de moldarmos a nossa realidade através da integração do espírito com a matéria. Quando deixamos as coisas fluírem e confiamos realmente na vida, conseguimos entender a situação que vivemos e temos uma visão mais ampla dos acontecimentos.

Confiemos nas visões que temos. A natureza da luz é penetrar nas trevas e iniciar-nos nos mistérios.

MORNINGSTAR, Sally, O Livro Wicca, Pensamento

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O Penedo da Saudade


Segundo reza a lenda, os duques de Caminha, D. Miguel Luís de Meneses e sua esposa D. Juliana, formavam um feliz casal que vivia uma vida muito recatada no seu palácio, afastado do bulício e das intrigas da Corte e da política bem efervescente naquele ano de 1641.

Mas... certo dia foram surpreendidos por um dos seus criados que anunciou a chegada do senhor Marquês de Vila Real, pai de D. Miguel de Meneses.

D. Juliana teve logo o presságio de que algo de grave se tratava, dado que se levantou empalidecida. Em vão, seu esposo, D. Miguel, tentava acalmar a sua amantíssima esposa. Entretanto, mandou entrar seu pai.

Não obstante o desejo do Marquês falar a sós com seu filho, este insistiu para que a esposa ficasse presente.

«Seja!» - concordou por fim o Marquês de Vila real. O seu aspecto era grave o que deixou o casal ainda mais inquieto. D. Miguel quis saber da visita de seu pai: «O que se passa, senhor meu pai?...»

Este encarou bem de frente o filho e retorquiu-lhe: «Senhor Duque de Caminha e meu filho, chegou a hora de el-rei D. João IV pagar a sua tirania! A conspiração está organizada e dela fazem parte o arcebispo-primaz, o Conde de Armamar, D. Agostinho de Vasconcelos, eu e vós!».

Muito surpreendido, D. Miguel que não havia sido anteriormente consultado, tentou não fazer parte da conjura: «Não meu pai! ... Não fui consultado nem farei parte de tal conjura! ...considero loucura o que ides fazer! ...quereis que a nossa pátria perca de novo a independência?».

O velho fidalgo quase que fuzilou o filho com o olhar: «E se vos der uma ordem?... não deveis trair-nos!». Houve um silencio trágico. O marquês rompeu-o: «Então? Que dizeis à ordem que acabo de transmitir-vos?». D. Juliana assistia atónita e horrorizada ao diálogo trágico travado entre seu sogro e o seu marido.

Cabisbaixo e bastante consternado, D. Miguel, não tendo outra alternativa o duque respondeu: «Só me resta cumpri-la».

Perante a louca decisão de seu amado esposo, D. Juliana caiu desmaiada num canapé, onde, momentos antes, partilhara as carícias do seu esposo que tanto amava.

Gorada a conjura, feitos prisioneiros todos os conjurados, entre os quais estava o Duque de Caminha, seriam encarcerados na fortaleza de S. Vicente de Belém.

Aí, no silêncio da noite, estendido nas palhas putrefactas do cárcere, D. Miguel tomou noção da sua fraqueza em ter acedido às ordens de seu pai! Tomou então a decisão de escrever a el-rei pedindo-lhe perdão: «Senhor meu Rei: Pedir perdão de um crime que não cometi é bem mais doloroso e cruel do que me sentir culpado. Mas, Senhor, de um só delito posso e devo ser acusado: não denunciei meu próprio pai. Procedi com deslealdade para com o meu Rei... mas que espécie de coração seria o meu, se fosse denunciar aquele que me deu a vida? Não quero ser tido como traidor para com o meu Rei. Mas também não poderia ter sido parricida! Que a vossa magnanimidade possa compreender a minha angustiosa situação, é tudo quanto vos peço e espero de Vós, da vossa misericordiosa bondade.»

Recebeu o rei a carta de D. Miguel. Leu-a atentamente. Mas sabia que não poderia fraquejar numa altura em que o seu trono não estava ainda bem alicerçado. O perdão não foi concedido.

Foi a vez de D. Juliana Maria, duquesa de Caminha, ir lançar-se aos pés do rei de Portugal. Vestiu-se com simplicidade e sem jóias. Levava o rosto molhado de lágrimas e a sua voz era dramaticamente suplicante:     «Senhor! Senhor meu rei! Se tendes coração, escutai os rogos desta pobre mulher que vedes a vossos pés! Juro-vos, Senhor, que o meu marido está inocente! Assisti á conversa do marquês de Vila Real com o duque. Sei como ele lutou para não pertencer ao grupo dos que estão condenados. Lutou até ao último momento. Mas a vontade do pai foi mais forte. Senhor, libertai-o! Servir-vos-á com fidelidade, juro-vos! E a felicidade voltará de novo ao meu lar agora desfeito!»

Por momentos o rosto do rei tomou uma expressão menos dura. Dir-se-ia que ia ceder. Mas, na realidade, o facto teria que ser tomado como e lição. D. Miguel de Meneses subiu ao cadafalso e com a morte pagou a fidelidade que o ligava a seu pai.

Inocente?... Culpado?... a decisão fora sua!

Para o povo, ele estaria inocente e pagou pelo crime do pai.

Diz a lenda que D. Juliana se retirou de Lisboa e se refugiou em S.Pedro de Muel, donde nunca mais saiu, desesperada e desiludida com a justiça dos homens. Todos os dias ia chorar o seu amor perdido injustamente num penedo solitário. Falava sozinha, por vezes. E a brisa levava ao infinito as suas lamentações: «Miguel, meu amor, nunca mais vos verei! Como posso viver sem vós, meu querido esposo? Como não me faz estoirar o coração esta saudade que me sufoca?...»

E era assim, muitas vezes, a balada dolente, a trágica canção de saudade que o mar acompanhava. Perante tamanha dor, o povo de S. Pedro de Muel, passou a chamar àquele rochedo, o Penedo da Saudade.

Há quem afirme ainda que, nas noites tempestuosas em que o mar bate de encontro à rocha, se ouvem os lamentos da duquesa de Caminha, cada vez mais débeis mas sempre doloridos e patéticos...

História de Vanina e Guidobaldo


Ford Madox Brown

"(...) Certa noite, terminada a ceia, o veneziano e o dinamarquês ficaram a conversar na varanda. Do outro lado do canal via-se um belo palácio com finas colunas esculpidas.

- Quem mora ali? - perguntou o cavaleiro.
- Agora ali só mora Jacob Orso com os seus criados, mas antes também ali morou Vanina, a rapariga mais bela de Veneza. Era orfã e Orso era o seu tutor. Quando era criança o tutor promteu-a em casamento a um seu parente, de seu nome Arrigo. Mas quando Vanina chegou aos 18 anos não quis casar com ele porque o achava velho, feio e maçador.Então Orso fechou-a em casa e nunca mais a deixou sair senão em sua companhia, ao Domingo, para ir à missa. Durante a semana Vanina prisioneira suspirava e bordava no interior do palácio, sempre rodeada e espiada pelas suas aias. Mas à noite Orso e as criadas adormeciam. Então Vanina abria a janela do seu quarto, debruçava-se sobre a varanda e penteava os seus cabelos, que eram loiros e tão compridos que passavam além da balaustrada e flutuavam, leves e brilhantes, enquanto as águas os reflectiam. E eram tão perfumados que de longe se sentia na brisa o seu aroma. E os rapazes de Veneza vinham de noite ver Vanina pentear seus cabelos. Mas nenhum ousava aproximar-se dela, pois o tutor fizera correr por toda a cidade que mandaria apunhalar quem ousasse namorá-la.

E Vanina, jovem e bela e sem amor, suspirava naquele palácio.

Mas um dia chegou a Veneza um homem que não temia Jacob Orso.Chamava-se Guidobaldo e era capitão de um navio. O seu cabelo preto era azulado como a asa de um corvo e a sua pele queimada pelo sol e pelo sal. Nunca no Rialto passeara tão belo navegador.

Ora certa noite, Guidobaldo Passou de Gôndola pelo canal. Sentiu no ar um maravilhoso perfume, levantou a cabeça e viu Vanina pentear os cabelos. Aproximou o seu barco da varanda e disse:

- Para cabelos tão belos e perfumados seria preciso um pente de oiro.

Vanina sorriu e atirou-lhe o seu pente de marfim.

Na noite seguinte à mesma hora o jovem capitão voltou a deslizar de gôndola ao longo do canal.

Vanina sacudiu os cabelos e disse-lhe:

- Hoje não me posso pentear pois não tenho pente.

- Tens este que eu te trago e que mesmo sendo de oiro brilha menos que o teu cabelo.

Então Vanina atirou-lhe um cesto atado por uma fita onde Guidobaldo depôs a sua oferta.

E dai em diante a rapariga mais bela de Veneza passou a ter um namorado.

Quando esta notícia se espalhou ela cidade os amigos do capitão preveniram-no de que estava a arriscar a sua vida, pois Orso não lhe perdoaria. Mas ele era forte e destemido, sacudiu os ombros e riu.

Ao fim do mês foi bater à porta do tutor.

- Que queres tu? - perguntou o velho.

- Quero a mão de Vanina.

- Vanina está noiva de Arrigo e não há-de casar com mais ninguém. Sai depressa de Veneza. Tens um dia para saires da cidade. Se amanhã ao pôr-do-sol ainda não tiveres partido mandarei sete homens com sete punhais para te matar.

Guidobaldo ouviu, sorriu, fez uma reverência e saiu.

Mas nessa noite a sua gôndola parou junto da varanda da casa de Orso. De cima atiraram um cesto preso por uma fita e dentro dele o jovem capitão depôs uma escada de seda. O cesto foi puxado para a varanda e a escada, depois de desenrolada, foi atada à balaustrada de mármore cor-de-rosa. Então, ágil e leve, Vanina desceu com os cabelos soltos flutuando na brisa. Guidobaldo cobriu-a com a sua capa escura e a gôndola afastou-se e desapareceu no nevoeiro de Outubro.

Na manhã seguinte as aias descobriram a ausência de Vanina e correram a prevenir o tutor. Jacob Orso chamou Arrigo e com ele e os seus esbirros dirigiram-se para o cais.

Mas quando ali chegaram o navio de Guidobaldo já tinha desaparecido.

Um velho marinheiro que ali se encontrava contou o sucedido.

- O capitão e a tua pupila chegaram aqui a meio da noite. Mandaram chamar um padre que os casou além, naquela capela. Mal terminou o casamento embarcaram e ao primeiro nascer do dia o navio levantou a âncora, içou as velas e navegou ao largo.

Jacob Orso olhou para a distância. O navio já não se avistava pois a brisa soprava da terra.

O tutor e Arrigo queixaram-se à senhoria de Veneza e ao doge. Depois mandaram quatro navios à procura dos fugitivos. Mas o mar é grande, há muitos portos, muitas baías, muitas cidades marítimas, muitas ilhas. E Vanina e Guidobaldo nunca mais foram descobertos".

in O Cavaleiro da Dinamarca de Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Under Ice


Kate Bush - Under Ice

It's wonderful
Everywhere, so white
The river has frozen over
Not a soul on the ice
Only me, skating fast
I'm speeding past trees leaving
Little lines in the ice
Cutting out little lines
In the ice, splitting, splitting sound
Silver heels spitting, spitting snow
There's something moving under
Under the ice
Moving under ice -- through water
Trying to get out of the cold water
"It's me"
Something, someone -- help them
"It's me"

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O conto do Vento

Um conto de Hans Christian Andersen

O que nos conta o vento

Edmund Dulac

O vento é tão alegre como uma criança. Já o viram correr, pelos campos, movendo o trigo, como as ondas do mar? É isto a dança do vento; mas ele não só dança, também canta. Vão ouvir como ele canta.
- Zum!... Zu!... Zê, ss... Ss... Ss!... - está ele a dizer.

Se não houvesse uns senhores muito graves, que usam chapéus que rodam pelas ruas, a vida na cidade seria para mim um grande aborrecimento. Todas as distrações fugiram das cidades. Há cem anos não havia nada de que eu mais gostasse do que soprar pelas ruas abaixo. Mas, então, as ruas eram uma exposição de quadros divertidos, mais que lugares de comércio.

Todas as casas tinham sa ua vitrina ou tabuleta. Havia a vitrina do alfaiate, cheia de figurinos de várias cores, querendo mostrar que o alfaiate era capaz de transformar o homem mais esfarrapado num elegante senhor.
O barbeiro tinha por cima da porta um grande pau com uma navalha de madeira pendurada; peixes, chapéus, queijos, bolas, enfim, todas as coisas que se vendiam na cidade, eram representadas nas tabuletas; e quando eu as fazia oscilar e as punha a bater umas contra as outras, produziam um barulho ensurdecedor.

Que momentos tão alegres e divertidos passei eu numa noite em que me meti pelos mostradores! Tinha jurado que me havia de divertir. O vento calou-se, dando em seguida um grito que estremeceu a casa.
- Oh! Como me lembro bem! - continuou ele a gritar pela varanda. - Era num dia em que os sapateiros se mudavam do antigo estabelecimento para o novo, levando consigo todas as tabuletas. Naqueles tempos, que já vão bem longe, os sapateiros eram ricos e poderosos e valia a pena ver a procissão que eles formavam. Havia um palhaço que abria a marcha, uma figura grotesca com a cara negra e uma roupa feita de retalhos. Todos riam. Hoje já não se divertem desta maneira. Atrás do palhaço ia a música, seguida dos homens que levavam os estandartes, e a grande bandeira de seda do grêmio dos sapateiros, enfeitada com uma grande bota preta. Subiu a um andaime, no qual tinha que fixar uma tabuleta, o sapateiro que presidia a associação e começou a discursar; mas o palhaço, que subiu atrás dele, fazia rir às gargalhadas o público, com os seus trejeitos.

Eu quis também tomar parte na brincadeira e comecei a bater com as tabuletas umas nas outras e o orador desceu dizendo:
"Não é possível fazer-me ouvir por causa do vento, mas vamos fixar a tabuleta."
Mas eu havia resolvido - continuou o vento - que a tabuleta não se fixasse. Soprei até que o avental do sapateiro lhe tapasse os olhos; fiz cair a escada e levei-lhe o chapéu e a cabeleira. Por fim cansaram-se de lutar comigo e foram-se todos para a sua nova casa para celebrarem o banquete.
O vento deu um salto e prosseguiu:
- Eu estava naquele dia disposto a fazer mal. Tenho conseguido divertir-me com os sapateiros, andava pelas ruas tentando novas proezas. Comecei a tirar os tectos das casas velhas, mas ainda sentia vontade de fazer pior. Continuei a fazer cirandar tudo com muita habilidade. Quando a gente da cidade despertou, no dia seguinte, encontrou a tabuleta do Instituto Histórico num salão de bilhares e o Instituto tinha lá, em troca, a tabuleta arrancada de um asilo para crianças... Um peleiro tinha pintado na tabuleta uma raposa. Mudei a tabuleta para o outro lado da rua, para a casa de um conselheiro avarento, que pretendia passar por excelente pessoa.

Toda a população se riu, sobretudo quando viu a tabuleta que eu tinha posto na casa de um juiz: era um pau com uma navalha de madeira. A mulher do juiz tinha o apelido de "A Navalha", por sua má língua. Mas a partida mais original - continuou o vento com voz baixa - foi a que preguei a uma rica mulher que inventava grandes histórias contra os seus vizinhos. Pus na casa dela um letreiro que havia num solar abandonado e que dizia: "Aqui precisa-se de estrume."

Foram dias alegres - suspirou o vento - mas que já não voltam. Depois do que eu fiz nunca mais usaram aquelas tabuletas; por minha causa muitos se envergonharam do seu comportamento e muitos homens nem queriam ouvir falar de mim e nas minhas travessuras. O vento acabou de falar na varanda e, dando um grito muito agudo, foi-se embora.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Prémio

"O Prémio Dardos é o reconhecimento dos ideais que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc... que em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, e suas palavras."


O Castelo recebeu da sua querida amiga ArKana, de Locais Sagrados , o seu primeiro selo!
Obrigada ArKana!

10 blogues que gosto muito de espreitar:

Flow My Tears
O Tarot da Shin
Cultura Visual
Literatura e Arte
Simbologia e Alquimia
Cidadã do Mundo
Art Inconnu
Seda Pura
Casa do Bruxo
Shadows of the Nile

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Devil


Pj Harvey - The Devil (From The Basement, 2008)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O Gato Preto - Edgar Allan Poe



Não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. Louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. Não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho. Mas amanhã posso morrer e, por isso, gostaria, hoje, de aliviar o meu espírito. Meu propósito imediato é apresentar ao mundo, clara e sucintamente, mas sem comentários, uma série de simples acontecimentos domésticos. Devido às suas consequências, tais acontecimentos  aterrorizaram-me, torturaram-me e destruíram-me.

No entanto, não tentarei esclarecê-los. Em mim, quase não produziram outra coisa senão horror - mas, em muitas pessoas, talvez lhes pareçam menos terríveis que grotescos. Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que, a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais.

Desde a infância, tomaram-se patentes a docilidade e o sentido humano de meu carácter. A ternura de meu coração era tão evidente, que me tomava alvo dos gracejos de meus companheiros. Gostava, especialmente, de animais, e os meus pais permitiam-me possuir grande variedade deles. Passava com eles quase todo o meu tempo, e jamais me sentia tão feliz como quando lhes dava de comer ou os acariciava. Com os anos, aumentou esta peculiaridade do meu carácter e, quando me tomei adulto, fiz dela uma das minhas principais fontes de prazer. Aos que já sentiram afecto por um cão fiel e sagaz, não preciso dar-me ao trabalho de explicar a natureza ou a intensidade da satisfação que se pode ter com isso. Há algo, no amor desinteressado, e capaz de sacrifícios, de um animal, que toca diretamente o coração daqueles que tiveram ocasiões freqüentes de comprovar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade de um simples homem.

Casei cedo, e tive a sorte de encontrar em minha mulher disposição semelhante à minha. Notando o meu amor pelos animais domésticos, não perdia a oportunidade de arranjar as espécies mais agradáveis de bichos. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão, coelhos, um macaquinho e um gato. Este último era um animal extraordinariamente grande e belo, todo negro e de espantosa sagacidade. Ao referir-se à sua inteligência, minha mulher, que, no íntimo de seu coração, era um tanto supersticiosa, fazia frequentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos são feiticeiras disfarçadas. Não que ela se referisse seriamente a isso: menciono o facto apenas porque aconteceu lembrar-me disso neste momento.

Pluto - assim se chamava o gato - era o meu preferido, com o qual eu mais me distraía. Só eu o alimentava, e ele me seguia sempre pela casa. Tinha dificuldade, mesmo, em impedir que me acompanhasse pela rua. Nossa amizade durou, desse modo, vários anos, durante os quais não só o meu carácter como o meu temperamento - enrubesço ao confessá-lo - sofreram, devido ao demónio da intemperança, uma modificação radical para pior. Tornava-me, dia a dia, mais taciturno, mais irritadiço, mais indiferente aos sentimentos dos outros. Sofria ao empregar linguagem desabrida ao dirigir-me à minha mulher. No fim, cheguei mesmo a tratá-la com violência. Os meus animais, certamente, sentiam a mudança operada no meu carácter. Não apenas não lhes dava atenção alguma, como, ainda, os maltratava. Quanto a Pluto, porém, ainda despertava em mim consideração suficiente que me impedia de maltratá-lo, ao passo que não sentia escrúpulo algum em maltratar os coelhos, o macaco e mesmo o cão, quando, por acaso ou afecto, cruzavam o meu caminho. O meu mal, porém, ia tomando conta de mim - que outro mal pode comparar-se ao álcool? - e, no fim, até Pluto, que começava agora a envelhecer e, por conseguinte, se tomara um tanto rabugento, até mesmo Pluto começou a sentir os efeitos de meu mau humor.

Certa noite, ao voltar a casa, muito embriagado, de uma das minhas andanças pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, e ele, assustado ante a minha violência, feriu-me a mão, levemente, com os dentes. Uma fúria demoníaca apoderou-se, instantaneamente. Já não sabia mais o que estava a fazer. Dir-se-ia que, súbito, minha alma abandonara o corpo, e uma perversidade mais do que diabólica, causada pela genebra, fez vibrar todas as fibras de meu ser. Tirei do bolso um canivete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, friamente, arranquei de sua órbita um dos olhos! Enrubesço, estremeço, abraso-me de vergonha, ao referir-me, aqui, a essa abominável atrocidade.

Quando, com a chegada da manhã, voltei à razão - dissipados já os vapores de minha orgia nocturna - , experimentei, pelo crime que praticara, um sentimento que era um misto de horror e remorso; mas não passou de um sentimento superficial e equívoco, pois minha alma permaneceu impassível. Mergulhei novamente em excessos, afogando logo no vinho a lembrança do que acontecera. Entrementes, o gato restabeleceu-se, lentamente. A órbita do olho perdido apresentava, é certo, um aspecto horrendo, mas não parecia sofrer mais qualquer dor. Passeava pela casa como de costume, mas, como bem se poderia esperar, fugia, tomado de extremo terror, à minha aproximação. Restava-me ainda o bastante do meu antigo coração para que, a princípio, sofresse com aquela evidente aversão por parte de um animal que, antes, me amara tanto. Mas esse sentimento logo se transformou em irritação. E, então, como para perder-me final e irremissivelmente, surgiu o espírito da perversidade.

Desse espírito, a filosofia não toma conhecimento. Não obstante, tão certo como existe a minha alma, creio que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano - uma das faculdades, ou sentimentos primários, que dirigem o carácter do homem. Quem não se viu, centenas de vezes, a cometer acções vis ou estúpidas, pela única razão de que sabia que não devia cometê-las? Acaso não sentimos uma inclinação constante mesmo quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é lei, simplesmente porque a compreendemos como tal? Esse espírito de perversidade, digo eu, foi a causa de minha queda final. O vivo e insondável desejo da alma de atormentar-se a si mesma, de violentar sua própria natureza, de fazer o mal pelo próprio mal, foi o que me levou a continuar e, afinal, a levar a cabo o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, meti-lhe um nó corredio em torno do pescoço e enforquei-o no galho de uma árvore. Fi-lo com os olhos cheios de lágrimas, com o coração transbordante do mais amargo remorso. Enforquei-o porque sabia que ele me amara, e porque reconhecia que não me dera motivo algum para que me voltasse contra ele. Enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado - um pecado mortal que comprometia a minha alma imortal, afastando-a, se é que isso era possível, da misericórdia infinita de um Deus infinitamente misericordioso e infinitamente terrível.

Na noite do dia em que foi cometida essa acção tão cruel, fui despertado pelo grito de "fogo!". As cortinas de minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande dificuldade que minha mulher, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus bens terrenos foram tragados pelo fogo, e, desde então, me entreguei ao desespero.

Não pretendo estabelecer relação alguma entre causa e efeito - entre o desastre e a atrocidade por mim cometida. Mas estou a descrever uma sequência de factos, e não desejo omitir nenhum dos elos dessa cadeia de acontecimentos. No dia seguinte ao do incêndio, visitei as ruínas. As paredes, com excepção de uma apenas, tinham desmoronado. Essa única excepção era constituída por um fino tabique interior, situado no meio da casa, junto ao qual se achava a cabeceira de minha cama. O reboco havia, aí, em grande parte, resistido à acção do fogo - coisa que atribuí ao fato de ter sido ele construído recentemente. Densa multidão se reunira em torno dessa parede, e muitas pessoas examinavam, com particular atenção e minuciosidade, uma parte dela, As palavras "estranho!", "singular!", bem como outras expressões semelhantes, despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se gravada em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A imagem era de uma exactidão verdadeiramente maravilhosa. Havia uma corda em tomo do pescoço do animal.

Logo que vi tal aparição - pois não poderia considerar aquilo como sendo outra coisa - , o assombro e terror que se me apoderaram foram extremos. Mas, finalmente, a reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado num jardim existente junto à casa. Aos gritos de alarme, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão. Alguém deve ter retirado o animal da árvore, lançando-o, através de uma janela aberta, para dentro do meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, com a intenção de despertar-me. A queda das outras paredes havia comprimido a vítima de minha crueldade no gesso recentemente colocado sobre a parede que permanecera de pé. A cal do muro, com as chamas e o amoníaco desprendido da carcaça, produzira a imagem tal qual eu agora a via.

Embora isso satisfizesse prontamente a minha razão, não conseguia fazer o mesmo, de maneira completa, com minha consciência, pois o surpreendente facto que acabo de descrever não deixou de causar-me, apesar de tudo, profunda impressão. Durante meses, não pude livrar-me do fantasma do gato e, nesse espaço de tempo, nasceu no meu espírito uma espécie de sentimento que parecia remorso, embora não o fosse. Cheguei, mesmo, a lamentar a perda do animal e a procurar, nos sórdidos lugares que então frequentava, outro bichano da mesma espécie e de aparência semelhante que pudesse substituí-lo.

Uma noite, em que me achava sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame, tive a atenção despertada, subitamente, por um objeto negro que jazia no alto de um dos enormes barris, de genebra ou rum, que constituíam quase que o único mobiliário do recinto. Fazia já alguns minutos que olhava fixamente o alto do barril, e o que então me surpreendeu foi não ter visto antes o que havia sobre o mesmo. Aproximei-me e toquei-o com a mão. Era um gato preto, enorme - tão grande quanto Pluto - e que, sob todos os aspectos, salvo um, se assemelhava a ele. Pluto não tinha um único pêlo branco em todo o corpo - e o bichano que ali estava possuía uma mancha larga e branca, embora de forma indefinida, a cobrir-lhe quase toda a região do peito.

Ao acariciar-lhe o dorso, ergueu-se imediatamente, ronronando com força e esfregando-se em minha mão, como se a minha atenção lhe causasse prazer. Era, pois, o animal que eu procurava. Apressei-me em propor ao dono a sua aquisição, mas este não manifestou interesse algum pelo felino. Não o conhecia; jamais o vira antes. Continuei a acariciá-lo e, quando me dispunha a voltar para casa, o animal demonstrou disposição de acompanhar-me. Permiti que o fizesse - detendo-me, de vez em quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar, sentiu-se imediatamente à vontade, como se pertencesse a casa, tomando-se, logo, um dos bichanos preferidos da minha mulher.

De minha parte, passei a sentir logo aversão por ele. Acontecia, pois, justamente o contrário do que eu esperava. Mas a verdade é que - não sei como nem por quê - o seu evidente amor por mim  desgostava-me e aborrecia-me. Lentamente, tais sentimentos de desgosto e fastio converteram-se no mais amargo ódio. Evitava o animal. Uma sensação de vergonha, bem como a lembrança da crueldade que praticara, impediam-me de maltratá-lo fisicamente. Durante algumas semanas, não lhe bati nem pratiquei contra ele qualquer violência; mas, aos poucos - muito gradativamente - , passei a sentir por ele inenarrável horror, fugindo, em silêncio, de sua odiosa presença, como se fugisse de uma peste.

Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta, na manhã do dia seguinte ao que o levei para casa, que, como Pluto, também havia sido privado de um dos olhos. Tal circunstância, porém, apenas contribuiu para que a minha mulher sentisse por ele maior carinho, pois, como já disse, era dotada, em alto grau, dessa ternura de sentimentos que constituíra, em outros tempos, um de meus traços principais, bem como fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.

No entanto, a preferência que o animal demonstrava pela minha pessoa parecia aumentar em razão directa da aversão que sentia por ele. Seguia-me os passos com uma pertinácia que dificilmente poderia fazer com que o leitor compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se em baixo da minha cadeira, ou saltava-me para o colo, cobrindo-me com as suas odiosas carícias. Se me levantava para andar, metia-se-me entre as pernas e quase me derrubava, ou então, cravando as suas longas e afiadas garras na minha roupa, subia por ela até o meu peito. Nessas ocasiões, embora tivesse ímpetos de matá-lo de um golpe, abstinha-me de fazê-lo devido, em parte, à lembrança de meu crime anterior, mas, sobretudo - apresso-me a confessá-lo - , pelo pavor extremo que o animal me despertava.

Esse pavor não era exactamente um pavor de mal físico e, contudo, não saberia defini-lo de outra maneira. Quase me envergonha confessar - sim, mesmo nesta cela de criminoso - , quase me envergonha confessar que o terror e o pânico que o animal me inspirava eram aumentados por uma das mais puras fantasias que se possa imaginar. A minha mulher, mais de uma vez, chamara-me a atenção para o aspecto da mancha branca a que já me referi, e que constituía a única diferença visível entre aquele estranho animal e o outro, que eu enforcara. O leitor, decerto, se lembrará de que aquele sinal, embora grande, tinha, a princípio, uma forma bastante indefinida. Mas, lentamente, de maneira quase imperceptível - que a minha imaginação, durante muito tempo, lutou por rejeitar como fantasiosa -, adquirira, por fim, uma nitidez rigorosa de contornos. Era, agora, a imagem de um objecto cuja menção me faz tremer... E, sobretudo por isso, eu encarava-o como a um monstro de horror e repugnância, do qual eu, se tivesse coragem, me teria livrado. Era agora, confesso, a imagem de uma coisa odiosa, abominável: a imagem da forca! Oh, lúgubre e terrível máquina de horror e de crime, de agonia e de morte!

Na verdade, naquele momento eu era um miserável - um ser que ia além da própria miséria da humanidade. Era uma besta-fera, cujo irmão fora por mim desdenhosamente destruído... uma besta-fera que se engendrara em mim, homem feito à imagem do Deus Altíssimo. Oh, grande e insuportável infortúnio! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite, conheceria jamais a bênção do descanso! Durante o dia, o animal não me deixava a sós um único momento; e, à noite, despertava de hora em hora, tomado do indescritível terror de sentir o hálito quente da coisa sobre o meu rosto, e o seu enorme peso - encarnação de um pesadelo que não podia afastar de mim - pousado eternamente sobre o meu coração!

Sob a pressão de tais tormentos, sucumbiu o pouco que restava em mim de bom. Pensamentos maus converteram-se em meus únicos companheiros - os mais sombrios e os mais perversos dos pensamentos. Minha rabugice habitual se transformou em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade - e enquanto eu, agora, me entregava cegamente a súbitos, frequentes e irreprimíveis acessos de cólera, a minha mulher - pobre dela! - não se queixava nunca convertendo-se na mais paciente e sofredora das vítimas.

Um dia, acompanhou-me, para ajudar-me numa das tarefas domésticas, até o porão do velho edifício em que a nossa pobreza nos obrigava a morar, O gato seguiu-nos e, quase fazendo-me rolar escada abaixo,  exasperou-me a ponto de perder o juízo. Apanhando uma machadinha e esquecendo o terror pueril que até então contivera minha mão, dirigi ao animal um golpe que teria sido mortal, se atingisse o alvo. Mas minha mulher segurou-me o braço, detendo o golpe. Tomado, então, de fúria demoníaca, livrei o braço do obstáculo que o detinha e cravei-lhe a machadinha no cérebro. A minha mulher caiu morta instantaneamente, sem lançar um gemido.

Realizado o terrível assassínio, procurei, movido por súbita resolução, esconder o corpo. Sabia que não poderia retirá-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Ocorreram-me vários planos. Pensei, por um instante, em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los por meio do fogo. Resolvi, depois, cavar uma fossa no chão da adega. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço do quintal. Mudei de ideia e decidi metê-lo num caixote, como se fosse uma mercadoria, na forma habitual, fazendo com que um carregador o retirasse da casa. Finalmente, tive uma ideia que me pareceu muito mais prática: resolvi emparedá-lo na adega, como faziam os monges da Idade Média com as suas vítimas.

Aquela adega  prestava-se muito bem a tal propósito. As paredes não haviam sido construídas com muito cuidado e, pouco antes, haviam sido cobertas, em toda a sua extensão, com um reboco que a humidade impedira de endurecer. Ademais, havia uma saliência numa das paredes, produzida por alguma chaminé ou lareira, que fora tapada para que se assemelhasse ao resto da adega. Não duvidei de que poderia facilmente retirar os tijolos naquele lugar, introduzir o corpo e recolocá-los do mesmo modo, sem que nenhum olhar pudesse descobrir nada que despertasse suspeita.

E não me enganei nos meus cálculos. Por meio de uma alavanca, desloquei facilmente os tijolos  tendo depositado o corpo, com cuidado, de encontro à parede interior. Segurei-o nessa posição, até poder recolocar, sem grande esforço, os tijolos em seu lugar, tal como estavam anteriormente. Arranjei cimento, cal e areia e, com toda a precaução possível, preparei uma argamassa que não se podia distinguir da anterior, cobrindo com ela, escrupulosamente, a nova parede. Ao terminar, senti-me satisfeito, pois tudo correra bem. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido rebocada. Limpei o chão com o maior cuidado e, lançando o olhar em torno, disse, de mim para comigo: "Pelo menos aqui, o meu trabalho não foi em vão".

O passo seguinte foi procurar o animal que havia sido a causa de tão grande desgraça, pois resolvera, finalmente, matá-lo. Se, naquele momento, tivesse podido encontrá-lo, não haveria dúvida quanto à sua sorte: mas parece que o esperto animal se alarmara ante a violência de minha cólera, e procurava não aparecer diante de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou imaginar o profundo e abençoado alívio que me causava a ausência de tão detestável felino. Não apareceu também durante a noite - e, assim, pela primeira vez, desde a sua entrada em casa, consegui dormir tranquila e profundamente. Sim, dormi mesmo com o peso daquele assassínio sobre a minha alma.

Transcorreram o segundo e o terceiro dia - e o meu algoz não apareceu. Pude respirar, novamente, como homem livre. O monstro, aterrorizado fugira para sempre de casa. Não tornaria a vê-lo! A minha felicidade era infinita! A culpa da minha tenebrosa acção pouco me inquietava. Foram feitas algumas investigações, mas respondi prontamente a todas as perguntas. Procedeu-se, também, a uma vistoria em minha casa, mas, naturalmente, nada podia ser descoberto. Eu considerava já como coisa certa a minha felicidade futura.

No quarto dia após o assassinato, uma caravana policial chegou, inesperadamente, a casa, e realizou, de novo, rigorosa investigação. Seguro, no entanto, de que ninguém descobriria jamais o lugar em que eu ocultara o cadáver, não experimentei a menor perturbação. Os policiais pediram-me que os acompanhasse em sua busca. Não deixaram de esquadrinhar um canto sequer da casa. Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram novamente ao porão. Não me alterei o mínimo que fosse. O meu coração batia calmamente, como o de um inocente. Andei por todo o porão, de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, caminhava, calmamente, de um lado para outro. A polícia estava inteiramente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia de desejo de dizer uma palavra, uma única palavra, à guisa de triunfo, e também para tomar duplamente evidente a minha inocência.

- Senhores - disse, por fim, quando os policiais já subiam a escada - , é para mim motivo de grande satisfação haver desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos os senhores óptima saúde e um pouco mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito bem construída... (Quase não sabia o que dizia, no meu insuportável desejo de falar com naturalidade.) Poderia, mesmo, dizer que é uma casa excelentemente construída. Estas paredes - os senhores já se vão? - , estas paredes são de grande solidez.
Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração.

Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.

Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.

Sobre a sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!


Edgar Allan Poe, Histórias Extraordinárias

domingo, 7 de novembro de 2010

A Dança dos Esqueletos


Disney Silly Symphony - The Skeleton Dance - 1929

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A Rainha dos Elfos

VIBRAÇÃO: o mundo subterrâneo
PALAVRAS-CHAVE: potencial, magia, beleza
PONTO ALTO: está cercado de magia
PONTO BAIXO: acredite no lado mágico do seu ser

Nas entranhas das cavernas da Mãe Terra, vive a Rainha Elfen. São várias as portas que conduzem ao seu mundo - podemos conhecer esse mundo se atravessarmos um pé de pilriteiro ou se nos sentarmos sobre um sidhe (monte das fadas)... Conhecida como Morrigan, a Rainha Elfen incorpora os três aspectos da deusa tríplice e a terra de Thier-na-Oge (terra da eterna juventude) é o seu domínio.

Habitantes da terra da eterna juventude, as fadas são seres poderosos pela sua beleza. Se nos deixarmos tocar por elas, passaremos também a conferir beleza e magia em tudo o que tocamos. Ao ligarmo-nos ao nosso verdadeiro potencial, as nossas acções revestir-se-ão de magia. Procuremos a magia de todas as situações com a orientação da Rainha Elfen. Ela guiar-nos-á no mundo subterrâneo das novas possibilidades.

Também somos espelhos poderosos para as outras pessoas. Ao reflectirmos a beleza de alguém, levamos um pouco de magia à sua vida. Quando qualquer coisa obstrui o nosso caminho, peçamos que seja reflectida de volta para o lugar de onde veio.

EXERCÍCIO DE MAGIA: Coroa de Fadas

Inverno: Na véspera de Natal, ao cair da noite, teça com linha de bordado prateada uma pequena coroa com alecrim, visco, tomilho e raminhos de pilriteiro (atenção aos espinhos e às frutinhas do visco, que são venenosas). Quando o sol estiver a pôr-se, sente-se debaixo de um pé de visco, com a coroa na cabeça, e medite.
Primavera: a coroa de fadas da Primavera pode ser feita da mesma forma, usando violetas, ramos floridos de maçã, amarrados com madressilva e linha de bordar dourada. Medite debaixo de uma macieira em flor, ao pôr-do-sol.

MORNINGSTAR, Sally, O Livro Wicca
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