Diz-se que há muitos, muitos anos, ali na região de Peniche, existiam duas famílias riquíssimas que mutuamente se odiavam. A causa desse ódio talvez já não a lembrassem, mas o facto é que ele ia passando de geração em geração, como legado familiar.
Dizem que ódio velho não cansa, mas, a certa altura, este ódio sem razões entre as duas famílias cansou. Rodrigo, filho de uns, e Leonor, filha dos outros, apaixonaram-se. Durante alguns meses viveram o seu amor, plenamente, sem que as famílias tivessem conhecimento do que se passava.
Pela tarde, dirigiam-se a um abismo rochoso, frente ao mar, por um pequeno carreiro aberto pelos seus passos. Sentavam-se no alto do penhasco olhando o mar. Lá em baixo, as gaivotas ora planavam sobre a água prateada, ora picavam sobre as ondas, donde emergiam com um peixe no bico. O sol ia caindo sem melancolia, porque aquele ainda não era o tempo da melancolia. Rodrigo e Leonor estavam ali, atemporais, sendo eles mesmos o marulho das vagas contra a rocha, o piar quase aflitivo das gaivotas, o grito silencioso do sol morrendo no mar. Eles estavam e esperavam. Esperavam que o tempo viesse e apagasse dos seus microcosmos familiares o ódio velho e já sem história.
Enganaram-se, porém. Um dia, o pai de Rodrigo descobriu o que se passava. Furioso, mais por tudo se passar sem o seu consentimento e conhecimento do que pelo velho ódio familiar, obrigou o filho a recolher ao Mosteiro das Berlengas. Achou, contudo, que o castigo não era suficiente, e fê-lo entrar no noviciado da ordem.
Inconsolável ele, inconsolável ela! Que fazer, porém? E mais uma vez trataram de esperar pelo tempo, que abrandaria as iras.
Rodrigo decidiu que, entretanto, não deixaria de ver a sua Leonor - precisava vê-la e falar-lhe - todos os dias. Para isso iludiu os superiores do mosteiro e, em noites de antemão combinadas, saía do convento e dirigia-se a uma pequeníssima enseada onde o esperava um velho amigo pescador, com um bote. Embarcava e o pescador remava silenciosamente até à costa, em direcção ao cabo Carvoeiro, desembarcando num portinho a que chamam Carreiro de Joana, ou Joane.
Quando Rodrigo chegava, já Leonor o esperava. Recolhida numa gruta onde só se conseguia chegar na maré baixa, virada de frente para o lado donde viria Rodrigo, Leonor aguardava a passagem do batel para acender uma luz assinalando a sua presença.
Durante noites e noites, tiveram os dois amantes o seu encontro, até que, uma noite, a luz não se acendeu. Mas acendeu-se o grito no corpo de Rodrigo e estilhaçou-se contra as rochas vazias que lhe devolveram apenas farrapos do que fora, do que tinham sido, do que jamais seriam. Semienlouquecido pela suspeita, sondou o mar negro e viscoso. Junto ao barco passava qualquer coisa clara flutuando na escuridão. Rodrigo lançou o braço e, ao reconhecer a capa de Leonor, saltou-lhe o coração do peito, saltou o homem do barco, tentando abarcar no mar o corpo que não iria encontrar.
Contou o velho pescador que Rodrigo, depois de ter por resposta ao seu grito o silêncio, quando viu a capa a flutuar na água atirou-se ao mar e não mais voltou à superfície, sendo impossível valer-lhe.
E em terra, o que se passara? Leonor chegou à gruta como todas as outras noites, com antecedência e aproveitando a maré. Aguardava a passagem do batel quando ouviu vozes, que reconheceu serem a de seu pai e de seus irmãos, que a procuravam.Julgou-se descoberta e, antes que fosse vista, tentou fugir, ocultar-se. Saltou de rochedo em rochedo, precipitadamente. De repente, escorregou-lhe um pé, e debaixo dela abriu-se o abismo que a recebeu nos seus braços, tal como Rodrigo o faria.
Diz-se que, no dia seguinte, apareceram os cadáveres dos amantes. O de Leonor, entalado entre os penhascos que bordam aquele sítio. O de Rodrigo, levado pela corrente, num banco de rochas a sueste dos Remédios.
À gruta chamam Paços de D. Leonor, e aos rochedos onde apareceu o cadáver de Rodrigo, o sítio de Frei Rodrigo.
Fernanda Frazão, Lendas de Portugal