sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Os Degolados de Montemor-O-Velho



Montemor-O-Velho é uma antiquíssima povoação de Portugal e já existia antes da fundação da nacionalidade. A sua história primitiva, especialmente nos tempos da reconquista cristã, está recheada de batalhas e feitos lendários.

Segundo conta a História, Montemor-O-Velho foi reconquistada aos mouros, pela primeira vez no tempo do rei Ramiro, senhor de Leão, no ano de 848. Mais tarde, em 990, caiu de novo nas mãos dos muçulmanos comandados pelo feroz Almansor, e só em 1034 Gonçalo Trastamires conseguiu reavê-la e entregá-la aos cristãos. Os mouros, porém, voltam a conquistá-la, e quando D. Fernando, "o Magno", anos depois, tomou Coimbra, Montemor-O-Velho foi definitivamente ocupada.

Conta a lenda que, depois de D. Ramiro ter conquistado a vila, se dirigiu ao Mosteiro do Lorvão, para visitar um parente seu, o abade D. João. Quando ali chegou, ficou muito constrangido, pois encontrou o mosteiro em ruínas e os frades na mais completa miséria. Em virtude das razias provocadas pela guerra, os campos estavam totalmente queimados e os frades, esqueléticos, há muito que passavam fome e frio. Apiedado, e para remediar a situação, doou  ao  mosteiro a vila de Montemor, com suas rendas, e alguns campos em redor, para que os cultivassem em proveito próprio. Impôs-lhe, contudo, a obrigação de manter no castelo da vila uma pequena guarnição de monges-guerreiros para defensão das gentes de Montemor e dos arredores.

Assim que D. Ramiro voltou para Leão, o abade D. João mudou-se para a vila com um pequeno grupo de monges, a fim de cumprir o prometido ao Rei. Os restantes frades mantiveram-se no convento tratando da salvação das almas, do cultivo dos campos e da cópia e iluminura de livros antigos.

Pouco tempo se viveu em paz, porém. Algum tempo depois, os campos do Mondego voltam a ser atroados pelos gritos de guerra dos mouros, que, em nova algarada, vêm pôr cerco ao castelo. Longo tempo é sitiada a vila de Montemor. Dentro das muralhas os sitiados defendem-se valorosamente, mas os mouros não têm pressa e os mantimentos vão escasseando. Aguentam os habitantes da vila enquanto podem, até que se lhes esgota a fé e os mantimentos. Não vislumbrando senão a rendição forçada, para pouparem violências e ultrajes às crianças, mulheres e velhos, decidem degolá-los antes da última e desesperada batalha.



Assim, cada homem, num frémito de horror, junta a sua família e encomenda a Deus as almas dos filhos, da mulher, dos pais. A tremer de angústia e dor, pede-lhes perdão, pede perdão a Deus, puxa da sua espada e corta a cabeça a cada um, numa sangrenta mas necessária chacina.

Partem então para a derradeira batalha das suas vidas, desesperados. Contudo, apesar da fome, do cansaço e do desânimo, lutaram tão denodadamente, tão sem medo morte - talvez por a trazerem já dentro de si mesmos - que a batalha foi ganha e de mouros não sobrou nem um. O campo de batalha era um mar de corpos onde se viam poucos cristãos. Porém, nenhum grito de vitória celebrou o feito, nenhum homem levantou a espada ao Céu a agradecer a vitória.

Cabisbaixos, ombros descaídos como se lhes pesasse o mundo todo nas costas, os homens voltaram ao castelo, chorando aquela vitória tão amargurada pelo sacrifício inútil das suas famílias. Aproximavam-se das portas da vila, quando um grito, e outro, os despertam do seu carpir. Olhando em frente, viram, atónitos e logo eufóricos, os mesmos velhos, mulheres e crianças que horas antes haviam degolado.

Milagre, milage! - era o grito de alegria que atroava os campos.


Fernanda Frazão, Lendas Portuguesas, Amigos do Livro Editores
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