domingo, 22 de agosto de 2010

Lady Godiva


Lady Godiva, tapeçaria de John Collier

Em Coventry viviam-se tempos difíceis. O sol não aquecera os pomares, fazendo com que as azeitonas e as vinhas não produzissem o suficiente para que se fizesse com fartura o azeite e o vinho. A miséria do povo era tão grande  que fazia dos seus habitantes os menos abastados de toda a Inglaterra.

Como se não bastasse a penúria vivida, a insatisfação assolava os habitantes, cada vez mais empobrecidos pelos altos impostos cobrados pelo conde Leofric, senhor absoluto daquele feudo. Grande parte do alimento colhido naquela estação ingrata, saía da boca do povo para que se pagasse os impostos ao nobre senhor. A fome pairava afoita pelas casas, pelos campos, por Coventry.

O conde Leofric era casado com uma das mulheres mais belas de toda a Inglaterra. Seu nome era Godiva (Godgifu - em velho inglês, ou seja,  god gift). Lady Godiva era serena, com cabelos sedosos, longos e dourados como os raios do sol. Os seus olhos eram azuis como o mar, traziam uma expressão de infinito que seduzia ao marido e todos os súbditos. Lady Godiva era de uma bondade imensa. Servos e escravos eram tratados por ela com dignidade. Não se furtava de ajudar aos desvalidos e desprovidos da grandiosidade da vida e da sua opulência secular.

Um dia, os servos trouxeram diante do conde um camponês que fora apanhado a roubar nabos da horta de Leofric. Levado diante do conde, o infeliz declarou que cometera aquela imprudência extrema por não ter nada para comer, que os últimos grãos que colhera foram usados para pagar os impostos devidos. Que os cinco filhos pequenos choravam de fome, atormentando-o toda a noite. Ao ouvir os relatos do infeliz, Lady Godiva comoveu-se, convenceu o marido a não punir o infeliz, fornecendo ainda alimentos para os seus filhos. Mesmo irritado, o conde acedeu à bondade infinita da mulher.

Depois destes acontecimentos, Lady Godiva andou por toda a cidade, montada no seu cavalo, e atravessou as muralhas, rondando por toda a parte. Descobriu que a fome assolava o lugar e que grande parte dos alimentos colhidos iriam para os impostos do conde. Compadecida com o sofrimento daquele povo, Lady Godiva prometeu a si mesma intervir e ajudá-lo.

Quando retornou ao castelo, encontrou o marido no estábulo, a supervisionar a alimentação das bestas. Lady Godiva desceu do seu cavalo e encontrou forças para contar ao marido da tristeza e miséria que se abatia sobre Coventry. Falou com tanta emoção que as lágrimas afloraram-lhe os olhos, derramando-se sobre as faces. O conde ouviu a mulher, que lhe implorava que baixasse os impostos. Não se deixou comover, mas as lágrimas da esposa, a sua veemência em defender os oprimidos, fizeram com que Leofric tentasse um ardil. Usando da sua inteligência sarcástica, esboçou um sorriso irónico e disse à mulher:

-Muito bem, já que insistis tanto na defesa deste povo, comovendo-me com as lágrimas que destroem a cor do céu de vossoa olhos, concedo-vos o pedido. Mas para que se realize, imponho-vos uma condição; que a próxima vez que fordes cavalgar, vós o façais sem roupas, completamente nua pelas ruas de Coventry.

-Tenho a vossa palavra de que se o fizer,  cumprirá a promessa?

-Minha amada, se cavalgardes nua pelas ruas de Coventry, não só baixarei os impostos, como perdoarei a dívida aos mais necessitados.

-Que assim seja feito.

Leofric sorriu para a mulher. A promessa fora-lhe fácil de fazer, difícil seria Lady Godiva cumprir a condição que impusera. Estava confiante de que ela desistiria e, ao sentir-se culpada, deixá-lo-ia em paz com aquelas lamúrias.

Mas Lady Godiva trazia no coração uma bondade maior do que qualquer moral estabelecida pela mesquinhez dos homens. Mandou que os seus servos avisassem ao povo do seu sacrifício para salvá-los dos impostos e da fome. Pediu que durante a sua cavalgada penitente, todos os moradores deixassem as ruas e que se fechassem em suas casas. Comovido com a grandiosidade de Godiva, o povo de Coventry aceitou atender-lhe o pedido.

Assim, Lady Godiva desafiou a ironia e mesquinhez do marido. Despiu as vestes no estábulo e montou, completamente nua, o seu belo cavalo. Cavalgou por todas as ruas de Coventry de cabeça erguida, sem que ninguém ousasse observá-la. Somente Jack, o moleiro, não resistiu a contemplar tamanha beleza. Contrariando todos os moradores, abriu uma fresta da janela da sua casa, e ao olhar tamanha beleza nua a desfilar pelas ruas, viu uma grande luz sobre os seus olhos, que foram cegados para sempre.

Ao retornar da cavalgada, Lady Godiva encontrou o conde à espera. Comovido, ele vestiu as roupas à mulher, depois ajoelhou -se aos seus pés, reafirmando a palavra dada. Levantou-se e beijou a mulher. Leofric retirou os impostos altos. Naquele ano as colheitas foram abundantes em Coventry. O azeite jorrou nos lagares, o trigo transformou-se em pães quentes sobre as mesas, e o vinho abençoou as refeições. Lady Godiva passou a ser amada pelo seu povo, até mesmo por Jack, o moleiro, que depois da luz da nudez da mulher sobre o cavalo, não viu mais nada na vida.
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