segunda-feira, 2 de julho de 2012
O Cão da Morte - Agatha Christie (4)
Não pretendo descrever todos os pormenores da experiência. O médico pronunciou muitas palavras sem importância nem sentido. Repetiu outras várias vezes, ora obtendo a mesma resposta, ora obtendo uma resposta diferente.
Naquela noite comentámos o resultado da experiência no pequeno chalé do médico nos penhascos.
Ele pigarreou e puxou seu caderno de notas para mais perto.
- Estes resultados são interessantíssimos ... muito curiosos. Em resposta às palavras "Sexto Signo", nós obtivemos uma profusão de outras: Destruição, Roxo, Cão, Poder, depois novamente Destruição e, por fim, Poder. Mais tarde, como talvez tenha observado, inverti o método, com os seguintes resultados. Em resposta a Destruição, obtive Cão; a Roxo, Poder; a Cão, novamente Morte, e a Poder, Cão. Isso está tudo inter-relacionado, mas numa segunda repetição de Destruição, eu obtive Mar, que parece totalmente descabido. Para as palavras "Quinto Signo", eu obtive Azul, Pensamentos, Pássaro, novamente Azul e, por fim, a frase bastante sugestiva Abertura do espírito à percepção. A partir do facto de que "Quarto Signo" evoca a palavra Amarelo, e depois Luz, e que "Primeiro Signo" é respondido por Sangue, eu deduzo que cada Signo tenha uma cor própria, e possivelmente um símbolo próprio, sendo que o do Quinto seria um Pássaro e o do Sexto um Cão. Desconfio, porém que o Quinto Signo representasse o que se conhece comumente pelo nome de telepatia - a abertura do espírito à percepção. O Sexto Signo, sem dúvida, representa o Poder da Destruição.
- Qual o significado de Mar?
- Isso, confesso que não sei explicar. Eu pronunciei a palavra depois e obtive a resposta comum de Barco. Para o Sétimo Signo, houve primeiro Vida, e na segunda vez Amor. Para o Oitavo Signo, obtive a resposta Nenhum. Suponho, portanto, que Sete era a soma e o número dos signos.
- Mas o sétimo não foi atingido - exclamei, numa súbita inspiração. - Pois com o Sexto chegava a Destruição!
- Ah! O senhor acha ? Mas nós estamos levando essas ... divagações malucas muito a sério. Elas de facto, só possuem interesse sob um ponto de vista médico.
- Certamente atrairão a atenção dos investigadores de fenómenos psíquicos.
Os olhos do médico franziram-se.
- Meu caro senhor, eu não tenho a menor intenção de divulgá-las ao público.
- Então o seu interesse ...?
- É unicamente profissional. Está claro que tomarei notas sobre o caso.
- Compreendo.
Mas, pela primeira vez, percebi que não estava compreendendo nada. Levantei-me.
- Bem, desejo-lhe uma boa noite, doutor. Amanhã parto de volta para a cidade.
- Ah!
Tive impressão de que havia satisfação, talvez alívio, atrás dessa exclamação.
- Desejo-lhe boa sorte nas suas investigações continuei, despreocupadamente. - Da próxima vez que nos encontrarmos, não solte o Cão da Morte em cima de mim, hein?!
Enquanto falava, segurava-lhe as mãos e senti o susto que levou. Mas logo se recompôs. Os lábios abriram-se num sorriso, mostrando os longos dentes pontudos.
- Que poder para um homem que se embriagasse com ele! - exclamou. - Ter a vida de cada ser humano na palma da mão!
E alargou ainda mais o sorriso.
Esse foi o fim de minha ligação direta com o caso.
Mais tarde, o caderno de notas e o diário do médico chegaram às minhas mãos. Vou reproduzir aqui os seus rápidos apontamentos, embora vocês hão de compreender que eles só caíram em meu poder algum tempo depois.
5 de agosto. Descobri que a irmã M.A. entende por "Eleitos" aqueles que reproduziram a raça. Eram, pelos vistos, venerados e exaltados acima do Sacerdócio. Veja-se o contraste com os cristãos primitivos.
7 de agosto. Convenci a irmã M.A. a deixar-me hipnotizá-la. Consegui provocar-lhe o sono e o transe hipnótico, mas não estabeleci nenhuma relação.
9 de agosto. Teriam existido civilizações antigas perto das quais a nossa fosse insignificante? Por estranho que pareça, tudo indica que sim, e eu sou o único homem que possui a pista ...
12 de agosto. A irmã M.A. não se mostra nada susceptível à sugestão quando hipnotizada. No entanto, o estado de transe é facílimo de ser provocado. Não posso entender.
13 de agosto. A irmã M.A. mencionou hoje que em "estado de graça" o "portão precisa ficar fechado, para que ninguém mais domine o corpo". Interessante - mas desconcertante.
18 de agosto. Quer dizer, pois, que o Primeiro Signo não é senão ... (faltam palavras que foram apagadas) ... então quantos séculos vai levar para chegar ao Sexto? Mas se houvesse um atalho para o poder ...
20 de agosto. Providenciei tudo para que M.A. viesse para cá com a enfermeira. Disse-lhe que é indispensável manter a paciente sob a ação da morfina. Estarei louco? Ou será que sou o Super-homem, com o Poder da Morte em minhas mãos?
(Aqui terminam os apontamentos.)
Creio que foi no dia 29 de agosto que recebi a carta. Vinha endereçada a mim, aos cuidados de minha cunhada, numa letra deitada de estrangeira. Abri o envelope com certa curiosidade. Dizia o seguinte:
Cher monsieur,
Falei só duas vezes com o senhor, mas sinto que é uma pessoa em quem posso confiar. Não sei se os meus sonhos são verdadeiros ou não, mas ultimamente tornaram-se mais nítidos ... E monsieur, de uma coisa estou absolutamente certa, o Cão da morte não é nenhum sonho ... nos dias de que lhe falo ( não sei se foram reais ou não). Aquele que era o Guarda do Cristal revelou cedo demais o Sexto Signo ao Povo ... O mal apoderou-se dos seus corações. Ganharam o poder de matar à vontade - e injustamente - tomados de cólera. Embriagaram-se com o volúpia do Poder. Quando percebemos isso, nós que ainda éramos puros, logo vimos que mais uma vez não completaríamos o Círculo nem atingiríamos o Signo da Vida Eterna. E aquele que estava escalado para ser o próximo Guarda do Cristal teve que agir. Para que os velhos perecessem e os novos, depois de séculos sem fim, pudessem ressurgir, ele soltou o Cão da Morte em cima do mar ( cuidando para não fechar o círculo) e o mar levantou-se na forma de um Cão e tragou a terra por completo ...
Já me lembrei disso antes - nos degraus do altar, na Bélgica ...
O Dr. Rose pertence à Irmandade. Ele conhece o Primeiro Signo e a forma do Segundo, embora ninguém, salvo alguns eleitos, esteja a par do seu significado. Por meu intermédio ele chegaria ao Sexto. Até agora consegui resistir-lhe - mas sinto-me cada vez mais fraca, monsieur, e não convém que um homem atinja o poder antes da hora. Muitos séculos hão de se passar antes que o mundo esteja preparado para receber o poder da morte em suas mãos ... Eu lhe suplico, monsieur, o senhor que tanto preza o bem e a verdade, ajude-me ... antes que seja tarde demais.
Sua irmã em Cristo,Marie Angelique.
Deixei o papel cair no chão. A terra sob os meus pés parecia menos firme do que o costume. Depois comecei a reanimar-me. A crença da coitada, por mais autêntica que fosse, tinha quase me contagiado. Mas não havia dúvida. O Dr. Rose, com seu fanatismo para tirar as coisas a limpo, estava ultrapassando dos limites de sua condição profissional. Eu ia correr até lá e ...
De repente dei com uma carta de Kitty no meio da correspondência. Abri o envelope. Dizia:
Aconteceu uma coisa horrível. Você lembra-se do chalé do Dr. Rose, no penhasco? Pois, ontem à noite, houve um desmoronamento de terra e o doutor e aquela pobre freira, a irmã Marie Angelique, morreram. Os destroços na praia são um verdadeiro horror - tudo amontoado de uma maneira fantástica - de longe parece um enorme cão ...
A carta caiu-me das mãos.
Os outros factos talvez fossem coincidência. Um tal de Mr. Rose, que eu descobri que era um parente rico do médico, morreu repentinamente, naquela mesma noite - dizem que fulminado por um raio. Ao que me consta, não houve nenhum temporal nas imediações, mas duas pessoas declararam ter ouvido uma trovoada. E no corpo do morto apareceu uma queimadura eléctrica "de uma forma curiosa". No seu testamento deixava tudo para o sobrinho, o Dr. Rose.
Ora, suponhamos que o Dr. Rose conseguisse obter o segredo do Sexto Signo por intermédio da irmã Marie Angelique. Ele sempre me deu impressão de ser um sujeito inescrupuloso - que não hesitaria em dar cabo da vida do tio se tivesse certeza de que ficaria impune. Mas uma frase da carta da irmã Marie Angelique não me saía da cabeça:" ... cuidando para não fechar o Círculo ... " O Dr. Rose não teve esse cuidado - talvez ignorasse as medidas que devia tomar ou até nem soubesse que precisava fazer isso. E assim a Força que usou voltou-se contra ele, fechando o círculo ...
Mas claro, que disparate! A explicação é perfeitamente natural. Que o doutor acreditasse nas alucinações da irmã Marie Angelique apenas prova que o cérebro dele também estava levemente desequilibrado.
No entanto, às vezes sonho com um continente submarino onde a humanidade outrora viveu e atingiu um grau de civilização muito mais adiantado que o nosso ... Ou será que a memória da irmã Marie Angelique funcionava de trás para diante - como alguns dizem que é possível - e que a tal Cidade dos Círculos se encontra no futuro e não no passado?
Disparate - claro que foi tudo uma alucinação.