domingo, 1 de julho de 2012

O Cão da Morte - Agatha Christie (3)



- Acho que ela está completamente desequilibrada - respondi, devagar.
- Foi isso que lhe pareceu ?
- Não ... para dizer a verdade, ela quase me convenceu ... de uma maneira até estranha. Ouvindo o que ela dizia, tive a impressão de que, de facto, havia feito tudo aquilo que descrevia ... operando uma espécie de gigantesco milagre. A maneira como ela acredita nisso parece-me bastante autêntico. É por isso que ...
- É por isso que o senhor diz que ela está desequilibrada. Tem razão. Mas agora encare o caso sob outro aspecto. Suponhamos que ela tenha, realmente, feito aquele milagre ... suponhamos que ela, pessoalmente, tenha destruído um prédio e centenas de seres humanos.
- Pelo simples poder da vontade? - retruquei, sorrindo.
- Não diria bem isso. O senhor sabe que uma pessoa pode destruir uma multidão apertando um botão que controla um sistema de minas.
- Sim, mas isso é uma coisa mecânica.
- De facto, é uma coisa mecânica, mas é a utilização e o controle de forças naturais. As trovoadas e a usina eléctrica são, fundamentalmente, a mesma coisa.
- Sim, mas para controlar a trovoada nós temos que recorrer a processos mecânicos.
Rose sorriu.
- Vou escapar pela tangente. Existe uma substância chamada gaultéria, que aparece na natureza em forma de vegetal, mas que também pode ser obtida sintética e quimicamente no laboratório.
- E depois?
- O que eu quero dizer é que muitas vezes há duas maneiras de chegar ao mesmo resultado. A nossa é, reconhecidamente, a sintética. Mas talvez haja outra. Os incríveis resultados conseguidos pelos faquires hindus, por exemplo, não se explicam satisfatoriamente com qualquer resposta fácil. As coisas que chamamos de sobrenaturais não têm, necessariamente, nada de sobrenatural. Uma lanterna eléctrica seria sobrenatural para um selvagem. O sobrenatural é apenas o natural daquilo cujas leis ainda não entendemos.
- Que quer dizer? - perguntei, fascinado.
- Que não posso excluir por completo a possibilidade de que o ser humano talvez seja capaz de armazenar uma grande força destruidora e usá-la para atingir os seus objectivos. Os meios pelos quais ele conseguiria isso poderiam parecer-nos sobrenaturais ... mas na realidade não são.
Arregalei os olhos.
Ele riu.
- Trata-se apenas de uma especulação - disse, despreocupado ... - Diga-me uma coisa, o senhor não reparou no gesto que ela fez quando mencionou a Casa de Cristal?
- Ela passou a mão pela testa.
- Exactamente. E traçou um círculo com o dedo. Tal como um católico ao fazer o sinal da cruz. Agora vou contar-lhe uma coisa bastante curiosa, Mr. Anstruther. A palavra cristal já foi usada tantas vezes nas divagações da minha paciente, que decidi fazer uma experiência. Peguei num cristal emprestado e um dia mostrei-o inesperadamente para testar a sua reacção.
- E então?
- Bem, o resultado foi muito interessante e sugestivo. Ela endureceu o corpo todo e ficou a olhar para o cristal como se não pudesse acreditar no que estava a ver. Depois caiu de joelhos diante dele, murmurou algumas palavras ... e desmaiou.
- Que palavras é que ela disse?
- Muito estranhas. "O Cristal! Então a fé ainda vive!"
- Que coisa incrível!
- Dá para a gente pensar, não é? Agora vem a parte curiosa. Quando ela voltou a si do desmaio, tinha-se esquecido de tudo. Mostrei-lhe o cristal e perguntei se sabia o que era. Respondeu que imaginava que fosse uma dessas bolas de cristal usadas pelos adivinhos. Perguntei-lhe se nunca tinha visto uma. Ela respondeu: "Nunca, M. le docteur". Mas eu notei que estava com o olhar perplexo. "O que é que a está preocupando, irmã?", perguntei. Ela respondeu: "É que acho tão estranho. Nunca tinha visto antes um cristal e no entanto ... parece-me que já conheço tão bem. Há uma coisa ... se ao menos me pudesse lembrar ..." O esforço que fazia para recordar era evidentemente tão penoso que eu proibi que pensasse mais naquilo. Isto foi há duas semanas. Venho contemporizando de propósito. Amanhã vou fazer uma nova experiência.
- Com o cristal?
- Sim. Quero que ela olhe bem para ele. Acho que o resultado vai ser interessante.
- Que espera descobrir? - perguntei, curioso.
A pergunta era ociosa, mas o resultado foi inesperado. Rose se impertigou todo, avermelhou, e quando respondeu, o seu comportamento havia mudado sem que se desse conta. Estava mais formal, mais profissional.
- A explicação para certos desequilíbrios mentais que não se compreendem. A irmã Marie Angelique é um objecto de estudo muito interessante.
Quer dizer, então, que o interesse de Rose era unicamente profissional? - pensei.
- Não se importa que eu assista? - perguntei.
Talvez fosse imaginação minha, mas pareceu-me que ele hesitou antes de responder. Tive a súbita intuição de que não queria que eu fosse.
- Claro que não. Não faço a menor objecção.
E acrescentou:
- O senhor não pretende demorar-se muito por aqui, não é?
- Só vou ficar até depois de amanhã.
Deu-me a impressão de ter ficado contente com a resposta. Desanuviou a testa e começou a falar sobre certas experiências feitas recentemente em cobaias.
Na tarde do dia seguinte, encontrei-me com o médico na hora marcada e fomos juntos à casa da irmã Marie Angelique. Ele estava muito gentil, talvez para desfazer a impressão causada na véspera.
Não leve muito a sério o que eu disse - comentou, rindo. - Não vá pensar que me dedico a ciências ocultas. O diabo é que eu tenho uma fraqueza infernal para tirar as coisas a limpo.
- É mesmo?
- É sim, e quanto mais fantásticas, mais eu gosto.
Riu como a gente ri de uma fraqueza engraçada.
Quando chegámos ao chalé, a enfermeira local queria consultar Rose sobre não sei o quê, de modo que fiquei a sós com a irmã Marie Angelique.
Vi que ela me analisava minuciosamente. Passado pouco tempo, disse:
- A nossa querida enfermeira disse-me que o senhor é irmão daquela senhora tão educada que mora lá no casarão para onde me levaram quando vim da Bélgica.
- Sou, sim - confirmei.
- Ela foi muito boa para mim. É uma óptima pessoa.
Calou-se, como que remoendo uma ideia. Por fim, perguntou:
- M. le docteur também é uma óptima pessoa?
Fiquei meio atrapalhado.
- É sim. Quero dizer ... acho que é.
- Ah! - Fez uma pausa e depois acrescentou: - Não há que negar que ele tem sido muito bom para mim.
- Sem dúvida nenhuma.
Ela levantou bruscamente os olhos.
- Monsieur ... o senhor ... o senhor que agora está a conversar aqui comigo ... o senhor acha que estou louca?
- Ora, irmã, uma ideia dessas nunca me ...
Ela sacudiu lentamente a cabeça - interrompendo meu protesto.
- Será que estou louca? Sei lá ... as coisas que eu me lembro ... as coisas que eu esqueço ...
Suspirou, e nesse instante Rose entrou na sala.
Cumprimentou-a alegremente e explicou o que desejava que ela fizesse.
- Sabe, há certas pessoas que possuem o dom de ver coisas num cristal. Desconfio que você também possui esse dom, irmã.
Pareceu inquieta.
- Não, não, eu não posso fazer isso. Tentar adivinhar o futuro ... isso é pecado. Rose ficou surpreso. Não contava com aquela reação. Mudou logo de tática.
- Não se deve querer ver o futuro, tem toda a razão. Já o passado ... é diferente.
- O passado?
- Sim ... existem muitas coisas estranhas no passado. Que voltam como relâmpagos ... entrevistos um instante ... e depois desaparecem de novo. Não procure ver nada no cristal, já que isso não lhe é permitido. Apenas pegue-o nas mãos ... assim. Olhe para ele ... olhe bem. É ... olhe bem no fundo ... cada vez mais. Já está a lembrar-se, não é? Está sim. E também ouve a minha voz, falando consigo. Agora responda às minhas perguntas. Não está a ouvir-me?
A irmã Marie Angelique tinha pegado no cristal como ele pedia, segurando-o com estranho respeito. Depois, à medida que ia olhando bem, o seu olhar tornou-se vago, como se não estivesse a ver mais nada, e deixou pender a cabeça. Parecia estar a dormir.
O médico tirou-lhe o cristal delicadamente das mãos e colocou-o em cima da mesa. Levantou-lhe o canto da pálpebra. Depois veio sentar-se ao meu lado.
- Temos que esperar que acorde. Acho que não vai demorar muito.
Tinha razão. Ao cabo de cinco minutos, a irmã Marie Angelique mexeu-se. Abriu languidamente os olhos.
- Onde estou?
- Aqui ... em casa. Você dormiu um pouco. Sonhou, não sonhou?
Ela confirmou com a cabeça.
- Sonhei, sim.
- Foi com o Cristal?
- Foi.
- Conte-nos.
- O senhor vai achar-me louca, M. le docteur. Pois imagine, no meu sonho, o Cristal era um emblema sagrado. Cheguei, inclusive a conceber um segundo Cristo, um Mestre do Cristal, que morreu pela sua fé, cujos discípulos foram caçados ... perseguidos ... Mas a fé sobreviveu.
- Sobreviveu?
- Sim ... durante quinze mil luas cheias ... quero dizer, durante quinze mil anos.
- Quanto tempo dura uma lua cheia?
- O tempo de treze luas comuns. Sim, foi na décima - quinta milésima lua cheia ... eu, naturalmente era uma Sacerdotisa do Quinto Signo na Casa de Cristal. Foi nos primeiros dias do advento do Sexto Signo ...
Franziu as sobrancelhas e uma expressão de medo passou-lhe pelo rosto.
- Cedo demais - murmurou. - Cedo demais. Um engano ... Ah sim! Agora me lembro! O Sexto Signo!
Deu um salto, depois recostou-se de novo, passou a mão pelo rosto e murmurou:
- Mas que estou a dizer? Deliro. Essas coisas nunca aconteceram.
- Vamos, não se preocupe.
Mas ela olhava-o, perplexa, angustiada.
- M. le docteur, eu não entendo. Por que é que eu tenho esses sonhos ... essas fantasias? Eu tinha apenas dezesseis anos quando entrei para a vida religiosa. Nunca viajei. No entanto, sonho com cidades, com pessoas e costumes estranhos. Por quê?
Apertou a cabeça entre as mãos.
- Nunca foi hipnotizada, irmã? Nem entrou em estado de transe?
- Nunca fui hipnotizada, M. le docteur. Quanto ao transe, quando eu rezava na capela, meu espírito muitas vezes alienava-se do corpo e eu ficava uma porção de horas como se estivesse morta. Era, sem dúvida, um estado de bem-aventurança, um estado de graça ... como dizia a Reverenda Madre. Prendeu a respiração. - Agora me lembro. Também chamávamos isto de estado de graça.
- Gostaria de fazer uma experiência, irmã - disse Rose numa voz bem natural. - Talvez disperse essas lembranças penosas. Vou pedir-lhe que olhe mais uma vez para o cristal. Depois dir-lhe-ei uma determinada palavra. Você responderá com outra. Continuaremos assim até que se sinta cansada. Concentre seus pensamentos no cristal e não nas palavras.
Enquanto eu tornava a desembrulhar o cristal e o entregava à irmã Marie Angelique, reparei na maneira respeitosa com que ela o pegava. Pousado sobre o veludo preto, ficou entre as delgadas palmas de suas mãos. Ela fitava-o com aqueles maravilhosos olhos profundos. Houve um curto silêncio e depois o médico disse: "Cão".
A irmã Marie Angelique respondeu imediatamente: "Morte".

(continua)
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