domingo, 29 de julho de 2012

Lenda do Túmulo dos Dois Irmãos

APC

O Túmulo dos Dois Irmãos, localizado em Sintra, é um dos mais misteriosos monumentos medievais desta vila. 

"É conhecida esta sepultura pela denominação de Sepultura de Dois Irmãos, nome que já tinha no século XV, como consta de um instrumento daquela época.
Dizem os naturais que, o que dera origem a esta denominação fora a tradição que entre eles corre antiga de pais e filhos que passo a descrever como a ouvi a um velho de noventa anos todo inebriado da sua veracidade:
Dois irmãos traziam amores por uma donzela que por aqueles sítios habitava, ignorando ambos os amores um do outro. Acontecendo por uma triste fatalidade encontrarem-se os dois irmãos, em uma noite tenebrosa, debaixo do balcão do objecto que tão enfeitiçados os trazia, um deles, persuadido que o outro lhe disputava os favores da sua dama, corre cego e inconsiderado sobre ele, e o estende morto a seus pés, vítima de um frenético ciúme. Porém, qual é a sua desesperação, quando pela voz moribunda daquele que julga seu rival, reconhece ter sido assassino do seu próprio irmão, que muito amava e lhe expira nos braços!
Cheio de desespero, volta contra o peito o ferro fratricida, e a cai morto sobre o cadáver ensanguentado do irmão, preferindo uma morte pronta, a uma vida inconsolável, cheia de remorsos."

Lenda do Túmulo dos Dois Irmãos, Visconde de Jerumenha, Cintra Pinturesca - 1839

Fonte: Secreto Palácio de Sintra

Em 1830, por ordem de D. Miguel, o túmulo foi aberto e constatou-se a existência de um único esqueleto...

Para quem quiser conhecer melhor este mistério, poderá ler dois artigos muito interessantes sobre o mesmo aqui e aqui.

sábado, 28 de julho de 2012

O Nesnás



Entre os monstros d' A Tentação figura o Nesnás, que "tem só um olho, uma face, uma mão, uma perna, meio corpo e meio coração." Um comentador, Jeari-Claude Margolin, afirma que foi Flaubert quem o imaginou, mas o primeiro volume d' As Mil e Uma Noites de Lane (1839) atribui-o ao comércio dos homens com os demónios. O Nesnás - é assim que Lane escreve a palavra - é "metade do ser humano; tem meia cabeça, meio corpo, um braço e uma perna; brinca com grande agilidade" e habita nas solidões do Hadramaute e do Iémen. É capaz de uma linguagem articulada; alguns têm a cara no peito, como os Blemies, e a cauda parecida com a da ovelha; a sua carne é suave e muito procurada. Uma variedade de Nesnás com asas de morcego abunda na ilha de Raij (talvez Bornéu), nos confins da China; "mas", acrescenta o incrédulo narrador, "Alá sabe de tudo".

Jorge Luís Borges, O Livro dos Seres Imaginários 

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Eu sou o anjo do desespero



























Eu sou o anjo do desespero.
Das minhas mãos distribuo a embriaguês,
a estupefacção, o esquecimento, gozo e
tormento dos corpos.
Meu discurso é o silêncio, meu canto o grito.
À sombra das minhas asas mora o terror.
Minha esperança é o último suspiro.
Minha esperança é a primeira batalha.
Eu sou a faca com que o morto arromba o seu caixão.
Eu sou aquele que será.
Meu descolar é a sublevação, meu céu o abismo de
amanhã.

Heiner Muller (traduzido por Adolfo Luxúria Canibal)

segunda-feira, 2 de julho de 2012

O Cão da Morte - Agatha Christie (4)



Não pretendo descrever todos os pormenores da experiência. O médico pronunciou muitas palavras sem importância nem sentido. Repetiu outras várias vezes, ora obtendo a mesma resposta, ora obtendo uma resposta diferente.
Naquela noite comentámos o resultado da experiência no pequeno chalé do médico nos penhascos.
Ele pigarreou e puxou seu caderno de notas para mais perto.
- Estes resultados são interessantíssimos ... muito curiosos. Em resposta às palavras "Sexto Signo", nós obtivemos uma profusão de outras: Destruição, Roxo, Cão, Poder, depois novamente Destruição e, por fim, Poder. Mais tarde, como talvez tenha observado, inverti o método, com os seguintes resultados. Em resposta a Destruição, obtive Cão; a Roxo, Poder; a Cão, novamente Morte, e a Poder, Cão. Isso está tudo inter-relacionado, mas numa segunda repetição de Destruição, eu obtive Mar, que parece totalmente descabido. Para as palavras "Quinto Signo", eu obtive Azul, Pensamentos, Pássaro, novamente Azul e, por fim, a frase bastante sugestiva Abertura do espírito à percepção. A partir do facto de que "Quarto Signo" evoca a palavra Amarelo, e depois Luz, e que "Primeiro Signo" é respondido por Sangue, eu deduzo que cada Signo tenha uma cor própria, e possivelmente um símbolo próprio, sendo que o do Quinto seria um Pássaro e o do Sexto um Cão. Desconfio, porém que o Quinto Signo representasse o que se conhece comumente pelo nome de telepatia - a abertura do espírito à percepção. O Sexto Signo, sem dúvida, representa o Poder da Destruição.
- Qual o significado de Mar?
- Isso, confesso que não sei explicar. Eu pronunciei a palavra depois e obtive a resposta comum de Barco. Para o Sétimo Signo, houve primeiro Vida, e na segunda vez Amor. Para o Oitavo Signo, obtive a resposta Nenhum. Suponho, portanto, que Sete era a soma e o número dos signos.
- Mas o sétimo não foi atingido - exclamei, numa súbita inspiração. - Pois com o Sexto chegava a Destruição!
- Ah! O senhor acha ? Mas nós estamos levando essas ... divagações malucas muito a sério. Elas de facto, só possuem interesse sob um ponto de vista médico.
- Certamente atrairão a atenção dos investigadores de fenómenos psíquicos.
Os olhos do médico franziram-se.
- Meu caro senhor, eu não tenho a menor intenção de divulgá-las ao público.
- Então o seu interesse ...?
- É unicamente profissional. Está claro que tomarei notas sobre o caso.
- Compreendo.
Mas, pela primeira vez, percebi que não estava compreendendo nada. Levantei-me.
- Bem, desejo-lhe uma boa noite, doutor. Amanhã parto de volta para a cidade.
- Ah!
Tive impressão de que havia satisfação, talvez alívio, atrás dessa exclamação.
- Desejo-lhe boa sorte nas suas investigações continuei, despreocupadamente. - Da próxima vez que nos encontrarmos, não solte o Cão da Morte em cima de mim, hein?!
Enquanto falava, segurava-lhe as mãos e senti o susto que levou. Mas logo se recompôs. Os lábios abriram-se num sorriso, mostrando os longos dentes pontudos.
- Que poder para um homem que se embriagasse com ele! - exclamou. - Ter a vida de cada ser humano na palma da mão!
E alargou ainda mais o sorriso.
Esse foi o fim de minha ligação direta com o caso.
Mais tarde, o caderno de notas e o diário do médico chegaram às minhas mãos. Vou reproduzir aqui os seus rápidos apontamentos, embora vocês hão de compreender que eles só caíram em meu poder algum tempo depois.
5 de agosto. Descobri que a irmã M.A. entende por "Eleitos" aqueles que reproduziram a raça. Eram, pelos vistos, venerados e exaltados acima do Sacerdócio. Veja-se o contraste com os cristãos primitivos.
7 de agosto. Convenci a irmã M.A. a deixar-me hipnotizá-la. Consegui provocar-lhe o sono e o transe hipnótico, mas não estabeleci nenhuma relação.
9 de agosto. Teriam existido civilizações antigas perto das quais a nossa fosse insignificante? Por estranho que pareça, tudo indica que sim, e eu sou o único homem que possui a pista ...
12 de agosto. A irmã M.A. não se mostra nada susceptível à sugestão quando hipnotizada. No entanto, o estado de transe é facílimo de ser provocado. Não posso entender.
13 de agosto. A irmã M.A. mencionou hoje que em "estado de graça" o "portão precisa ficar fechado, para que ninguém mais domine o corpo". Interessante - mas desconcertante.
18 de agosto. Quer dizer, pois, que o Primeiro Signo não é senão ... (faltam palavras que foram apagadas) ... então quantos séculos vai levar para chegar ao Sexto? Mas se houvesse um atalho para o poder ...
20 de agosto. Providenciei tudo para que M.A. viesse para cá com a enfermeira. Disse-lhe que é indispensável manter a paciente sob a ação da morfina. Estarei louco? Ou será que sou o Super-homem, com o Poder da Morte em minhas mãos?
(Aqui terminam os apontamentos.)
Creio que foi no dia 29 de agosto que recebi a carta. Vinha endereçada a mim, aos cuidados de minha cunhada, numa letra deitada de estrangeira. Abri o envelope com certa curiosidade. Dizia o seguinte:
Cher monsieur,
Falei só duas vezes com o senhor, mas sinto que é uma pessoa em quem posso confiar. Não sei se os meus sonhos são verdadeiros ou não, mas ultimamente tornaram-se mais nítidos ... E monsieur, de uma coisa estou absolutamente certa, o Cão da morte não é nenhum sonho ... nos dias de que lhe falo ( não sei se foram reais ou não). Aquele que era o Guarda do Cristal revelou cedo demais o Sexto Signo ao Povo ... O mal apoderou-se dos seus corações. Ganharam o poder de matar à vontade - e injustamente - tomados de cólera. Embriagaram-se com o volúpia do Poder. Quando percebemos isso, nós que ainda éramos puros, logo vimos que mais uma vez não completaríamos o Círculo nem atingiríamos o Signo da Vida Eterna. E aquele que estava escalado para ser o próximo Guarda do Cristal teve que agir. Para que os velhos perecessem e os novos, depois de séculos sem fim, pudessem ressurgir, ele soltou o Cão da Morte em cima do mar ( cuidando para não fechar o círculo) e o mar levantou-se na forma de um Cão e tragou a terra por completo ...
Já me lembrei disso antes - nos degraus do altar, na Bélgica ...
O Dr. Rose pertence à Irmandade. Ele conhece o Primeiro Signo e a forma do Segundo, embora ninguém, salvo alguns eleitos, esteja a par do seu significado. Por meu intermédio ele chegaria ao Sexto. Até agora consegui resistir-lhe - mas sinto-me cada vez mais fraca, monsieur, e não convém que um homem atinja o poder antes da hora. Muitos séculos hão de se passar antes que o mundo esteja preparado para receber o poder da morte em suas mãos ... Eu lhe suplico, monsieur, o senhor que tanto preza o bem e a verdade, ajude-me ... antes que seja tarde demais.
Sua irmã em Cristo,Marie Angelique.
Deixei o papel cair no chão. A terra sob os meus pés parecia menos firme do que o costume. Depois comecei a reanimar-me. A crença da coitada, por mais autêntica que fosse, tinha quase me contagiado. Mas não havia dúvida. O Dr. Rose, com seu fanatismo para tirar as coisas a limpo, estava ultrapassando dos limites de sua condição profissional. Eu ia correr até lá e ...
De repente dei com uma carta de Kitty no meio da correspondência. Abri o envelope. Dizia:
Aconteceu uma coisa horrível. Você lembra-se do chalé do Dr. Rose, no penhasco? Pois, ontem à noite, houve um desmoronamento de terra e o doutor e aquela pobre freira, a irmã Marie Angelique, morreram. Os destroços na praia são um verdadeiro horror - tudo amontoado de uma maneira fantástica - de longe parece um enorme cão ...
A carta caiu-me das mãos.
Os outros factos talvez fossem coincidência. Um tal de Mr. Rose, que eu descobri que era um parente rico do médico, morreu repentinamente, naquela mesma noite - dizem que fulminado por um raio. Ao que me consta, não houve nenhum temporal nas imediações, mas duas pessoas declararam ter ouvido uma trovoada. E no corpo do morto apareceu uma queimadura eléctrica "de uma forma curiosa". No seu testamento deixava tudo para o sobrinho, o Dr. Rose.
Ora, suponhamos que o Dr. Rose conseguisse obter o segredo do Sexto Signo por intermédio da irmã Marie Angelique. Ele sempre me deu impressão de ser um sujeito inescrupuloso - que não hesitaria em dar cabo da vida do tio se tivesse certeza de que ficaria impune. Mas uma frase da carta da irmã Marie Angelique não me saía da cabeça:" ... cuidando para não fechar o Círculo ... " O Dr. Rose não teve esse cuidado - talvez ignorasse as medidas que devia tomar ou até nem soubesse que precisava fazer isso. E assim a Força que usou voltou-se contra ele, fechando o círculo ...
Mas claro, que disparate! A explicação é perfeitamente natural. Que o doutor acreditasse nas alucinações da irmã Marie Angelique apenas prova que o cérebro dele também estava levemente desequilibrado.
No entanto, às vezes sonho com um continente submarino onde a humanidade outrora viveu e atingiu um grau de civilização muito mais adiantado que o nosso ... Ou será que a memória da irmã Marie Angelique funcionava de trás para diante - como alguns dizem que é possível - e que a tal Cidade dos Círculos se encontra no futuro e não no passado?
Disparate - claro que foi tudo uma alucinação.

domingo, 1 de julho de 2012

O Cão da Morte - Agatha Christie (3)



- Acho que ela está completamente desequilibrada - respondi, devagar.
- Foi isso que lhe pareceu ?
- Não ... para dizer a verdade, ela quase me convenceu ... de uma maneira até estranha. Ouvindo o que ela dizia, tive a impressão de que, de facto, havia feito tudo aquilo que descrevia ... operando uma espécie de gigantesco milagre. A maneira como ela acredita nisso parece-me bastante autêntico. É por isso que ...
- É por isso que o senhor diz que ela está desequilibrada. Tem razão. Mas agora encare o caso sob outro aspecto. Suponhamos que ela tenha, realmente, feito aquele milagre ... suponhamos que ela, pessoalmente, tenha destruído um prédio e centenas de seres humanos.
- Pelo simples poder da vontade? - retruquei, sorrindo.
- Não diria bem isso. O senhor sabe que uma pessoa pode destruir uma multidão apertando um botão que controla um sistema de minas.
- Sim, mas isso é uma coisa mecânica.
- De facto, é uma coisa mecânica, mas é a utilização e o controle de forças naturais. As trovoadas e a usina eléctrica são, fundamentalmente, a mesma coisa.
- Sim, mas para controlar a trovoada nós temos que recorrer a processos mecânicos.
Rose sorriu.
- Vou escapar pela tangente. Existe uma substância chamada gaultéria, que aparece na natureza em forma de vegetal, mas que também pode ser obtida sintética e quimicamente no laboratório.
- E depois?
- O que eu quero dizer é que muitas vezes há duas maneiras de chegar ao mesmo resultado. A nossa é, reconhecidamente, a sintética. Mas talvez haja outra. Os incríveis resultados conseguidos pelos faquires hindus, por exemplo, não se explicam satisfatoriamente com qualquer resposta fácil. As coisas que chamamos de sobrenaturais não têm, necessariamente, nada de sobrenatural. Uma lanterna eléctrica seria sobrenatural para um selvagem. O sobrenatural é apenas o natural daquilo cujas leis ainda não entendemos.
- Que quer dizer? - perguntei, fascinado.
- Que não posso excluir por completo a possibilidade de que o ser humano talvez seja capaz de armazenar uma grande força destruidora e usá-la para atingir os seus objectivos. Os meios pelos quais ele conseguiria isso poderiam parecer-nos sobrenaturais ... mas na realidade não são.
Arregalei os olhos.
Ele riu.
- Trata-se apenas de uma especulação - disse, despreocupado ... - Diga-me uma coisa, o senhor não reparou no gesto que ela fez quando mencionou a Casa de Cristal?
- Ela passou a mão pela testa.
- Exactamente. E traçou um círculo com o dedo. Tal como um católico ao fazer o sinal da cruz. Agora vou contar-lhe uma coisa bastante curiosa, Mr. Anstruther. A palavra cristal já foi usada tantas vezes nas divagações da minha paciente, que decidi fazer uma experiência. Peguei num cristal emprestado e um dia mostrei-o inesperadamente para testar a sua reacção.
- E então?
- Bem, o resultado foi muito interessante e sugestivo. Ela endureceu o corpo todo e ficou a olhar para o cristal como se não pudesse acreditar no que estava a ver. Depois caiu de joelhos diante dele, murmurou algumas palavras ... e desmaiou.
- Que palavras é que ela disse?
- Muito estranhas. "O Cristal! Então a fé ainda vive!"
- Que coisa incrível!
- Dá para a gente pensar, não é? Agora vem a parte curiosa. Quando ela voltou a si do desmaio, tinha-se esquecido de tudo. Mostrei-lhe o cristal e perguntei se sabia o que era. Respondeu que imaginava que fosse uma dessas bolas de cristal usadas pelos adivinhos. Perguntei-lhe se nunca tinha visto uma. Ela respondeu: "Nunca, M. le docteur". Mas eu notei que estava com o olhar perplexo. "O que é que a está preocupando, irmã?", perguntei. Ela respondeu: "É que acho tão estranho. Nunca tinha visto antes um cristal e no entanto ... parece-me que já conheço tão bem. Há uma coisa ... se ao menos me pudesse lembrar ..." O esforço que fazia para recordar era evidentemente tão penoso que eu proibi que pensasse mais naquilo. Isto foi há duas semanas. Venho contemporizando de propósito. Amanhã vou fazer uma nova experiência.
- Com o cristal?
- Sim. Quero que ela olhe bem para ele. Acho que o resultado vai ser interessante.
- Que espera descobrir? - perguntei, curioso.
A pergunta era ociosa, mas o resultado foi inesperado. Rose se impertigou todo, avermelhou, e quando respondeu, o seu comportamento havia mudado sem que se desse conta. Estava mais formal, mais profissional.
- A explicação para certos desequilíbrios mentais que não se compreendem. A irmã Marie Angelique é um objecto de estudo muito interessante.
Quer dizer, então, que o interesse de Rose era unicamente profissional? - pensei.
- Não se importa que eu assista? - perguntei.
Talvez fosse imaginação minha, mas pareceu-me que ele hesitou antes de responder. Tive a súbita intuição de que não queria que eu fosse.
- Claro que não. Não faço a menor objecção.
E acrescentou:
- O senhor não pretende demorar-se muito por aqui, não é?
- Só vou ficar até depois de amanhã.
Deu-me a impressão de ter ficado contente com a resposta. Desanuviou a testa e começou a falar sobre certas experiências feitas recentemente em cobaias.
Na tarde do dia seguinte, encontrei-me com o médico na hora marcada e fomos juntos à casa da irmã Marie Angelique. Ele estava muito gentil, talvez para desfazer a impressão causada na véspera.
Não leve muito a sério o que eu disse - comentou, rindo. - Não vá pensar que me dedico a ciências ocultas. O diabo é que eu tenho uma fraqueza infernal para tirar as coisas a limpo.
- É mesmo?
- É sim, e quanto mais fantásticas, mais eu gosto.
Riu como a gente ri de uma fraqueza engraçada.
Quando chegámos ao chalé, a enfermeira local queria consultar Rose sobre não sei o quê, de modo que fiquei a sós com a irmã Marie Angelique.
Vi que ela me analisava minuciosamente. Passado pouco tempo, disse:
- A nossa querida enfermeira disse-me que o senhor é irmão daquela senhora tão educada que mora lá no casarão para onde me levaram quando vim da Bélgica.
- Sou, sim - confirmei.
- Ela foi muito boa para mim. É uma óptima pessoa.
Calou-se, como que remoendo uma ideia. Por fim, perguntou:
- M. le docteur também é uma óptima pessoa?
Fiquei meio atrapalhado.
- É sim. Quero dizer ... acho que é.
- Ah! - Fez uma pausa e depois acrescentou: - Não há que negar que ele tem sido muito bom para mim.
- Sem dúvida nenhuma.
Ela levantou bruscamente os olhos.
- Monsieur ... o senhor ... o senhor que agora está a conversar aqui comigo ... o senhor acha que estou louca?
- Ora, irmã, uma ideia dessas nunca me ...
Ela sacudiu lentamente a cabeça - interrompendo meu protesto.
- Será que estou louca? Sei lá ... as coisas que eu me lembro ... as coisas que eu esqueço ...
Suspirou, e nesse instante Rose entrou na sala.
Cumprimentou-a alegremente e explicou o que desejava que ela fizesse.
- Sabe, há certas pessoas que possuem o dom de ver coisas num cristal. Desconfio que você também possui esse dom, irmã.
Pareceu inquieta.
- Não, não, eu não posso fazer isso. Tentar adivinhar o futuro ... isso é pecado. Rose ficou surpreso. Não contava com aquela reação. Mudou logo de tática.
- Não se deve querer ver o futuro, tem toda a razão. Já o passado ... é diferente.
- O passado?
- Sim ... existem muitas coisas estranhas no passado. Que voltam como relâmpagos ... entrevistos um instante ... e depois desaparecem de novo. Não procure ver nada no cristal, já que isso não lhe é permitido. Apenas pegue-o nas mãos ... assim. Olhe para ele ... olhe bem. É ... olhe bem no fundo ... cada vez mais. Já está a lembrar-se, não é? Está sim. E também ouve a minha voz, falando consigo. Agora responda às minhas perguntas. Não está a ouvir-me?
A irmã Marie Angelique tinha pegado no cristal como ele pedia, segurando-o com estranho respeito. Depois, à medida que ia olhando bem, o seu olhar tornou-se vago, como se não estivesse a ver mais nada, e deixou pender a cabeça. Parecia estar a dormir.
O médico tirou-lhe o cristal delicadamente das mãos e colocou-o em cima da mesa. Levantou-lhe o canto da pálpebra. Depois veio sentar-se ao meu lado.
- Temos que esperar que acorde. Acho que não vai demorar muito.
Tinha razão. Ao cabo de cinco minutos, a irmã Marie Angelique mexeu-se. Abriu languidamente os olhos.
- Onde estou?
- Aqui ... em casa. Você dormiu um pouco. Sonhou, não sonhou?
Ela confirmou com a cabeça.
- Sonhei, sim.
- Foi com o Cristal?
- Foi.
- Conte-nos.
- O senhor vai achar-me louca, M. le docteur. Pois imagine, no meu sonho, o Cristal era um emblema sagrado. Cheguei, inclusive a conceber um segundo Cristo, um Mestre do Cristal, que morreu pela sua fé, cujos discípulos foram caçados ... perseguidos ... Mas a fé sobreviveu.
- Sobreviveu?
- Sim ... durante quinze mil luas cheias ... quero dizer, durante quinze mil anos.
- Quanto tempo dura uma lua cheia?
- O tempo de treze luas comuns. Sim, foi na décima - quinta milésima lua cheia ... eu, naturalmente era uma Sacerdotisa do Quinto Signo na Casa de Cristal. Foi nos primeiros dias do advento do Sexto Signo ...
Franziu as sobrancelhas e uma expressão de medo passou-lhe pelo rosto.
- Cedo demais - murmurou. - Cedo demais. Um engano ... Ah sim! Agora me lembro! O Sexto Signo!
Deu um salto, depois recostou-se de novo, passou a mão pelo rosto e murmurou:
- Mas que estou a dizer? Deliro. Essas coisas nunca aconteceram.
- Vamos, não se preocupe.
Mas ela olhava-o, perplexa, angustiada.
- M. le docteur, eu não entendo. Por que é que eu tenho esses sonhos ... essas fantasias? Eu tinha apenas dezesseis anos quando entrei para a vida religiosa. Nunca viajei. No entanto, sonho com cidades, com pessoas e costumes estranhos. Por quê?
Apertou a cabeça entre as mãos.
- Nunca foi hipnotizada, irmã? Nem entrou em estado de transe?
- Nunca fui hipnotizada, M. le docteur. Quanto ao transe, quando eu rezava na capela, meu espírito muitas vezes alienava-se do corpo e eu ficava uma porção de horas como se estivesse morta. Era, sem dúvida, um estado de bem-aventurança, um estado de graça ... como dizia a Reverenda Madre. Prendeu a respiração. - Agora me lembro. Também chamávamos isto de estado de graça.
- Gostaria de fazer uma experiência, irmã - disse Rose numa voz bem natural. - Talvez disperse essas lembranças penosas. Vou pedir-lhe que olhe mais uma vez para o cristal. Depois dir-lhe-ei uma determinada palavra. Você responderá com outra. Continuaremos assim até que se sinta cansada. Concentre seus pensamentos no cristal e não nas palavras.
Enquanto eu tornava a desembrulhar o cristal e o entregava à irmã Marie Angelique, reparei na maneira respeitosa com que ela o pegava. Pousado sobre o veludo preto, ficou entre as delgadas palmas de suas mãos. Ela fitava-o com aqueles maravilhosos olhos profundos. Houve um curto silêncio e depois o médico disse: "Cão".
A irmã Marie Angelique respondeu imediatamente: "Morte".

(continua)
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...