Santarém, à qual já se chamou «Varanda do Ribatejo», é uma cidade de antiquíssimo povoamento. Crê-se que a sua fundaçao remonta a uns dez séculos antes da era cristã. Segundo a lenda, o seu nome terá sido, no início, Esca-Abidis.
HISTÓRIA:
Nos meados do século X antes de Cristo foi tentada a sua conquista por Fenícios e Gregos; quatro séculos depois, foi a vez de os Cartagineses tentarem, igualmente sem resultado, o assalto ao pequeno burgo.
No início do século IV antes da era cristã, povos de raça céltica atacaram a cidadela e depois de longo assédio acabaram por conseguir a sua conquista. Juntaram-se então aos autóctones, lusitanos ao que consta, e, mediante uma política de alianças, acabaram sendo integrados e assimilados pela população.
Quando os Romanos invadiram a Península, Santarém, pela sua situação estratégica, foi um dos pontos no qual incidiu o desejo de conquista dos invasores. Ao fim de longos esforços, a praça foi conquistada e
quando Júlio César pacificou a terra ibérica foi-lhe dado o nome de Proesidium Jullíum. No dealbar da era cristã, Octávio mudou-lhe o nome para Scalabicastrum, e fez dela sede de uma das províncias em que dividiu a Península.
Desde sempre considerada uma das povoações mais importantes da sua região, não só pela situação quase inexpugnável das suas muralhas, como pela riqueza dos campos circundantes, Santarém veio a ser presa cobiçada pelos povos bárbaros que invadiram o Império Romano. Assim, os Alanos e os Vândalos chamaram-lhe Escalabis, os Suevos, mais tarde, Calabicastrum, e os Visigodos mudaram-lhe o nome para Santa Irene ou Santa Helena, em memória de uma virgem sacrificada cujo corpo foi encontrado a boiar nas águas do Tejo, frente à cidade.
Anos mais tarde, aquando da invasão árabe da Península, a cidade caiu nas mãos dos Mouros, que lhe chamaram Chantarin, Chantirein ou Xantarin. Com a reconquista cristã, Santarém, umas vezes moura, outras cristã, ao fim de muitos anos de cobiça e luta, acabou por ser reconquistada para os cristãos, definitivamente,por Afonso Henriques, que a tomou de assalto em 13 de Março de 1147.
LENDA:
Segundo conta a lenda, em 1215 a. C., reinava sobre a próspera Lusitânia um príncipe chamado Gergoris ou Gorgoris. Chamavam a este homem «o Melícola», porque ensinara os seus a extrair o mel dos favos das abelhas.
Certo dia, Ulisses da Ítaca, que vagabundeava pelos mares na sua penosa Odisseia de uma década, chegou à foz do Tejo com alguns navios. Achando a amenidade e o encanto do país ideais para o seu descanso, decidiu fixar-se na região, a fim de recuperar as forças perdidas e aguardar a melhor ocasião de tornar à Grécia.
Hóspede de Gorgoris, Ulisses, como visitante de honra, tinha permissão de vaguear por onde fosse seu desejo. Deste modo, acabou conhecendo a bela Calipso,filha única do seu hospedeiro. E do longo e descuidado convívio dos dois jovens foi nascendo a paixão. Destes amores com Ulisses teve Calipso um menino, ao qual chamou Ábidis.
Gorgoris, mal soube do caso, ficou furioso e procurou Ulisses para o castigar. Este, porém, avisado da fúria de «o Melícola», juntara à pressa os companheiros e zarpara rápido, rumo à Ítaca.
Entretanto, o príncipe lusitano, incapacitado de exercer o seu legítimo desejo de vingança, querendo apagar os traços da passagem do grego e para que não ficasse memória do acto impensado de Calipso, mandou que encerrassem a criança num cesto e a lançassem ao Tejo.O rio encarregar-se-ia de destruir aquele vestígio dos amores de sua filha e a justiça far-se-ia!
A maré subia na hora em que o cesto foi deixado sobre as águas e, em vez de a criança ser atirada para a foz pela corrente, foi empurrada rio acima até encalhar numas brenhas, perto da gruta que servia de covil a uma cerva, ou, segundo outras versões, a uma loba. O animal, ouvindo o choro da criança, acercou-se do cesto, farejou e, vendo que era apenas uma cria esfomeada,amamentou-a e criou-a.
O menino foi crescendo até que se fez homem. Alimentava-se de frutos silvestres e de peixe do rio, e à noite, quando lhe chegava o sono, alapava-se em qualquer gruta juntamente com a fera que a habitasse, porque de todas era familiar. Durante o dia corria pelas brenhas, tomava banho no rio e brincava com os animais selvagens, aprendendo a viver naqueles ermos.
Certa manhã, caçadores lusitanos embrenharam-se mais nos silvados da margem do Tejo e, de súbito, viram aquele rapaz saltando valados como se fora veado. Acharam estranho o espectáculo insólito daquele homem vivendo só por ali e, cheios de curiosidade, decidiram tentar capturá-lo. Armaram-lhe uma cilada com redes e esperaram calmamente a sua passagem. Desprevenido, Abidis acabou por ser capturado, apesar da resistência feroz que opôs aos caçadores, e levado à presença de uma mulher: Calipso, sua mãe.
Esta, depois do primeiro espanto, observou atentamente o homem selvagem que lhe traziam e acabou por descobrir, por uma cicatriz que lhe ficara de nascença, que aquele era o seu filho abandonado. Hesitou a princesa no que fazer, recordando a fúria de Gorgoris há vinte anos atrás.
A notícia, porém, chegou ao velho «Melícola» antes que Calipso decidisse o que fazer, pois os próprios caçadores se encarregaram de a espalhar pela Lusitânia. Mas haviam passado vinte longos anos sobre aquele dia em que Gorgoris mandara deitar a criança ao rio. Velho de setenta anos e sem herdeiro varão, o príncipe ponderou no que fazer do rapaz e acabou por se decidir a educá-lo como seu sucessor.
Em boa hora «o Melícola" educou Ábidis, porque por sua morte, o jovem foi rei dos Lusitanos e ficou nos anais do seu povo como rei justo, sábio e humano. E não esquecendo os acontecimentos ligados ao seu nascimento, decidiu construir naquele local inculto e silvestre uma cidade que lembrasse para sempre os seus primeiros vinte anos de vida. E à bela povoação que mandou construir chamou Esca-Ábidis, que significa manjar do príncipe Ábidis.
Fernanda Frazão, Lendas Portuguesas