domingo, 29 de agosto de 2010

A Moura do Arco do Repouso



O castelo de Faro foi conquistado na ofensiva cristã de Afonso III e de Paio Peres Correia, em 23 de Fevereiro de 1249. O exército real e os homens da Ordem de Santiago tinham cercado as muralhas e os navios do rei tinham cortado, no mar, todas as possibilidades de socorro. Assim, ao fim de algum tempo, os mouros renderam-se.

Diz a lenda que parte das forças que atacaram o Castelo de Faro fora colocada no largo actualmente chamado de São Francisco, e estas forças eram comandadas por um brioso cavaleiro, robusto e formoso rapaz. Este oficial pôde ver, em certa ocasião, a formosa e gentil filha do governador mouro e dela ficou enamorado. Por algum tempo namoraram por intermédio de um escravo da moura que ia e vinha com recados.

Certo dia o guerreiro conseguiu convencer a bela moura a encontrarem-se pela noite, na porta do nascente, hoje conhecida por da Senhora do Repouso. O costumeiro intermediário abriria a dita porta, à hora combinada, esgueirando-se o cavaleiro para dentro, para o seu encontro amoroso.

Antes de a noite cair, porém o cavaleiro dirigiu-se a alguns amigos e disse-lhes do encontro com a sua amada pedindo-lhes que se não voltasse depois de algum tempo, quando tomassem o castelo, que poupassem a filha do governador. Trataram os amigos de o demover daquela empresa, mas, ante a firmeza da sua decisão, prometeram cumprir as suas ordens.

À hora marcada, entrou o oficial no castelo e aí em doce colóquio se entreteve com a dama dos seus encantos. À hora de sair, encaminharam-se ambos até à porta do castelo, levando consigo um irmão da rapariga, criança de oito anos.

Quando se aproximaram da porta, disse-lhes o escravo que aí ficara de guarda que do lado de fora estava muita gente, pois que mais de uma vez lhe chegava aos ouvidos vozes abafadas e um ou outro tinir de espadas. A moura estremeceu.

- Nada temas, que respondo pelos que estão de fora - disse o cristão, enquanto lhe dava um beijo de despedida. O escravo destrancou a porta e, no momento em que a entreabria para que o cavaleiro saísse, os batentes foram impelidos de fora com fúria. Apareceu, então, um grupo de cristãos, que numa gritaria de estontear, clamavam pelo guerreiro que já não esperavam voltar a ver. Este recuou uns passos e tomou nos braços a sua amada, intentando protegê-la, enquanto clamava: - Para trás, para trás! Estou aqui!



No castelo soara já o alarme e de todos os lados surgiam defensores armados até aos dentes. Vendo-se em perigo iminente, o cavaleiro enamorado avançou para fora com a moura ao colo e o irmãozinho ao lado. Porém, ao transpor a porta, notou que tinha nos braços não uma formosa jovem, mas apenas uns farrapos, que se desfaziam à mais pequena e leve aragem. Olhou para o lado e não viu a criança. Então teve a sensação estranha de lhe ter acontecido qualquer coisa de profundo e incompreensível e desmaiou desamparado.

Acordou horas depois, já na sua tenda do arraial, tendo ao lado um amigo e companheiro de armas. O amigo explicou-lhe que o tinham encontrado caído à porta do castelo quando tentaram entrar por o julgarem morto numa cilada. O governador, porém, acudira bem armado e rechaçara o pequeno grupo cristão. Nesse momento, D. Paio Peres e D. João Aboim acudiram com os seus exércitos e forçaram os mouros a entrar no castelo.

Depois de ouvir tudo isto, o cavaleiro dirigiu-se à porta do castelo. Ao entrar pelo Arco da Senhora do Repouso viu ao lado esquerdo a cabeça de uma criança que assomava por um buraco. Reconhecendo nela o mourinho da sua amada, perguntou: -O que fazes aí, menino?

- Estamos aqui encantados: eu e a minha irmã.
- Porquê? Quem vos encantou?
- O nosso pai. Soube por uma espia que levavas nos braços a minha irmã acompanhada por mim e, invocando Allah, encantou-nos aqui no momento em que transpunhas a porta. Por atraiçoarmos a santa causa do nosso Allah aqui ficaremos encantados.
- Por muito tempo?
- Enquanto o mundo for mundo - respondeu a criança com um ar misterioso, enquanto se ia diluindo nos ares.

O guerreiro chorou. Ainda quis perguntar pela moça, mas o mourinho tinha desaparecido sem deixar rasto. Diz-se que nunca mais riu. Terminado o cerco, pediu ao rei dispensa do exército e recolheu-se a um convento, onde professou.


in Lendas Portuguesas, de Fernanda Frazão, Amigos do Livro Editores
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