quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O Túmulo - um conto de H.P. Lovecraft



Ao relatar as circunstâncias que conduziram ao meu confinamento neste asilo de loucos, tenho consciência de que a minha posição atual criará dúvidas naturais acerca da autenticidade da minha narrativa.: É grande infortúnio o facto de que o grosso da humanidade seja limitado demais, em sua visão mental, para pesar com paciência e inteligência estes fenómenos isolados, vistos e sentidos apenas por uma minoria psicologicamente sensível, os quais jazem fora de toda experiência comum. Homens de intelecto mais amplo sabem que não existe nenhuma distinção precisa entre o real e o irreal; que todas as coisas aparecem como tais apenas em virtude dos delicados meios psíquicos e mentais de cada indivíduo, por meio dos quais nos tornamos conscientes delas; mas o materialismo prosaico da maioria reputa como loucura os lances de visão superior que perfuram o véu comum do empirismo óbvio.

O meu nome é Jervas Dudley, e desde a mais tenra infância que  tenho sido um sonhador e um visionário. Rico para além das necessidades de uma vida comercial, e de um temperamento inapto para os estudos formais e o recreio social daqueles com quem me relaciono, tenho lidado desde sempre em reinos que não pertencem ao mundo visível, passando a minha juventude e adolescência debruçado sobre livros antigos e pouco conhecidos e a percorrer os campos e bosques dos arredores do meu lar ancestral. Não creio que o que li nesses livros ou vi nesses campos e bosques fosse exatamente o que os outros rapazes leram e viram ali, mas sobre isso preciso falar pouco, pois que discorrer mais detalhadamente apenas confirmaria essas calúnias cruéis acerca do meu intelecto que às vezes ouço sussurrarem os atendentes furtivos que me rodeiam.

Basta-me relatar os eventos, sem analisar as causas. Disse que vivi afastado do mundo visível, mas não disse que vivi sozinho. Isso nenhuma criatura humana poderia fazer, desde que, à falta da camaradagem dos vivos, inevitavelmente se entra na companhia de coisas que não são – ou não mais estão – vivas. Próximo à minha casa existe um vale arborizado bastante singular, em cujas profundezas crepusculares eu passava grande parte de meu tempo a ler, a pensar e a sonhar. Pelas suas encostas cobertas de musgo ensaiei os meus primeiros passos de infância, e em volta de seus carvalhos grotescamente retorcidos teceram-se minhas primeiras fantasias de juventude. Conheci as dríades das árvores e não raro assisti às suas danças selvagens sob os raios vacilantes de uma lua pálida, mas acerca dessas coisas não devo falar agora.

Falarei apenas do túmulo solitário no meio do matagal mais escuro do declive – o túmulo abandonado dos Hydes, uma velha e nobre família cujo último descendente direto fora depositado nos seus negros recessos muitas décadas antes de eu nascer. O pórtico a que me refiro é feito de granito ancestral, lavado e descolorido pelas névoas e pela humidade de muitas gerações. Escavada na encosta, apenas a entrada da construção é visível. A porta – uma pesada e proibitiva laje de pedra – pende de dobradiças de metal enferrujado e, ligeiramente aberta, jaz lacrada por pesadas correntes de ferro e cadeados, de acordo com um repulsivo costume de meio século atrás. A residência do clã cujos descendentes estão enterrados aqui coroou certa vez o declive no qual está a tumba, mas há muito tombou vitimada pelas chamas que desceram do céu na forma de um relâmpago. 

Daquela tempestade que à meia-noite destruiu essa lúgubre mansão, os habitantes mais velhos da região às vezes falam entre sussurros e inquietações, aludindo ao que chamam de “ira divina” de um modo que nos últimos anos fez crescer vagamente o fascínio que eu sentia pelo sepulcro encravado na mata. Um homem apenas pereceu no fogo. Quando o último dos Hydes foi enterrado neste local de sombra e quietude, a triste urna de cinzas veio de uma terra distante, para a qual a família se mudou quando a mansão pegou fogo. Não resta ninguém para colocar flores diante do portal de granito, e muito poucos se dão ao trabalho de enfrentar as sombras depressivas que parecem guardar estranhamente as pedras lavadas pelas chuvas.



Jamais esquecerei aquele entardecer em que, pela primeira vez, me deparei com a semioculta casa da morte. Foi em pleno verão, quando a alquimia da natureza transmuda a paisagem silvestre numa única e quase homogénea massa de verde, quando os sentidos estão quase intoxicados com os mares afluentes de verdura húmida e os odores subtilmente indefiníveis do solo e da vegetação. Numa tal ambientação, a mente perde as suas perspectivas, o tempo e o espaço tornam-se triviais e irreais, e ecos de um esquecido passado pré-histórico batem insistentemente contra a consciência enlevada. Durante o dia todo eu tinha estado a perambular através dos bosques místicos do vale, a conceber pensamentos que não há que discutir e a conversar com coisas que não há que nomear. 

Com apenas dez anos, eu tinha visto e ouvido muitas maravilhas que a turba desconhecia e já era espantosamente maduro em certos aspectos. Quando, depois de abrir caminho entre duas touceiras de arbustos, subitamente deparei com a entrada da cripta, não tinha o menor conhecimento acerca do que encontrara. Os blocos negros de granito, a porta curiosamente semicerrada e os entalhes funerais sobre o arco não despertaram em mim quaisquer associações de caráter fúnebre ou terrível. Sobre sepulturas e tumbas eu sabia e devaneara bastante, mas fora poupado, devido ao meu temperamento peculiar, de qualquer contacto com adros e cemitérios. A estranha casa de pedra escondida entre o mato na encosta constituía para mim apenas uma fonte de interesse e especulação, e o seu interior frio e húmido, para dentro do qual eu espiava através da excruciante abertura, não me sugeria nada de morte ou decadência. Mas naquele instante de curiosidade nasceu o desejo loucamente irracional que me trouxe até este inferno de confinamento. Espicaçado por uma voz que deve ter vindo da alma medonha da floresta, tomei a decisão de penetrar na escuridão que me convocava, a despeito das pesadas correntes que impediam a minha passagem. 

Na luz evanescente do dia chacoalhei insistentemente os obstáculos enferrujados, na esperança de abrir a porta de pedra, e até mesmo experimentei espremer o meu corpo magro através do pouco espaço disponível, mas estas tentativas não surtiram efeito. Curioso no início, tornei-me frenético e, quando ao anoitecer retornei a casa, jurara aos cem deuses da mata que a qualquer custo um dia haveria de forçar a minha entrada nas profundezas escuras e gélidas que pareciam me chamar. O médico de barba grisalha que todos os dias vem até aos meus aposentos, certa vez, disse a um visitante que essa decisão marcou o começo de uma lamentável monomania; mas deixarei o julgamento final a cargo de meus leitores, depois que souberem de tudo. Os meses subsequentes à minha descoberta foram gastos em tentativas fúteis de forçar o complicado cadeado da cripta semicerrada, bem como em perquirições cuidadosas e vigilantes acerca da natureza e da história da construção. 

Com os ouvidos tradicionalmente receptivos de um menino, aprendi muito, embora uma discrição habitual não me permitisse contar a ninguém sobre o meu conhecimento ou minha resolução. Será talvez importante mencionar que não fiquei nem um pouco surpreso ou aterrorizado com a natureza do pórtico. As minhas ideias bastante originais acerca da vida e da morte tinha- me levado a associar, de maneira vaga, a argila fria com o corpo que respira, e senti que a grande e sinistra família da mansão incendiada estava de algum modo dentro do espaço de pedra que eu procurava explorar. Lendas murmuradas acerca de ritos exóticos e festins pagãos de épocas passadas, ocorridos dentro do vestíbulo ancestral, despertaram em mim um novo e irresistível interesse pelo túmulo, em cuja porta eu sentar-me-ia durante horas diariamente. Um dia acendi uma vela diante da entrada obstruída, mas nada pude ver a não ser um lance descendente de degraus de pedra húmida. 

O odor do lugar repelia-me e ao mesmo tempo enfeitiçava-me. Sentia como se já o tivesse conhecido num passado remoto, anterior a qualquer lembrança, anterior mesmo à habitação deste corpo que agora possuo. No ano seguinte àquele em que vi o túmulo pela primeira vez, deparei-me, no sótão cheio de livros de minha casa, com uma tradução corroída das Vidas de Plutarco. Ao ler a vida de Teseu, fiquei deveras impressionado com a passagem em que se fala da enorme pedra sob a qual o menino herói haveria de encontrar as pistas sobre o seu destino assim que se tornasse adulto o suficiente para erguer o grande peso. A lenda teve o efeito de aplacar a minha aguda impaciência em atravessar o portal, fazendo-me sentir que a hora ainda não chegara. Mais tarde – disse a mim mesmo – crescerei e adquirirei força e habilidade que me permitirão destrancar facilmente a porta que os grilhões encerram, mas até lá será melhor me conformar com o que me parece ser a vontade do destino. Com efeito, as minhas vigílias diante do portal húmido tornaram-se menos persistentes, e grande parte do meu tempo era despendida em outras atividades igualmente estranhas. 

Às vezes levantava-me em silêncio durante a noite, saindo às escondidas para andar pelos cemitérios ou locais de sepultamentos dos quais os meus pais me mantiam afastado. O que eu fazia lá não posso dizer, pois agora não estou seguro de algumas coisas, mas sei que no dia seguinte a essas rondas noturnas ,eu costumava pasmar os que me cercavam, exibindo conhecimento de assuntos quase esquecidos durante muitas gerações. Foi depois de uma noite dessas que surpreendi a comunidade com uma ideia inusitada acerca do enterro do rico e celebrado Squire Brewster, personagem da história local que fora sepultado em 1711 e cuja lousa, exibindo um crânio gravado e ossos cruzados, ia lentamente se transformando em pó. Num lance de fantasia infantil, aventei não somente que o coveiro, Goodman Simpson, teria roubado os sapatos de fivelas de prata, as calças de seda e as roupas de baixo de cetim do falecido antes do enterro, mas que o próprio Squire, não totalmente inanimado, ter-se-ia virado duas vezes no seu caixão coberto de terra no dia seguinte ao do sepultamento. 

Mas a ideia de entrar no túmulo nunca me saiu da cabeça, sendo mesmo estimulada pela inesperada descoberta genealógica de que a  minha ascendência materna mantinha um ligeiro vínculo com a supostamente extinta família dos Hydes. Último da minha raça paterna, eu era igualmente o último dessa linhagem mais antiga e mais misteriosa. Comecei a sentir que o túmulo era meu e a esperar ansiosamente pelo momento em que poderia atravessar a porta de pedra e descer na escuridão por aqueles degraus de pedra lodosa. Adquiri o hábito de ouvir com atenção através da porta semiaberta, preferindo as horas da quietude noturna para essa estranha vigília. Quando adquiri mais idade, abri uma pequena clareira no matagal que recobria a face do declive, permitindo que a vegetação circundante cercasse e envolvesse a abertura como uma espécie de cerca viva selvagem. Essa clareira tornou-se no meu templo, a porta fechada no meu santuário, e era aqui que eu me deitava sobre o solo musgoso a pensar estranhos pensamentos e a sonhar sonhos estranhos. 



A noite da primeira revelação estava bastante abafada. Devo ter adormecido de cansaço, pois foi com uma clara sensação de despertar que ouvi as vozes. Hesito em falar desses acentos e timbres, não falarei da sua qualidade, mas posso dizer que apresentavam espantosas diferenças de vocabulário, pronúncia e modos de enunciação. Cada matiz dialetal da Nova Inglaterra, desde as ásperas sílabas dos colonos puritanos até à retórica precisa de cinquenta anos atrás, parecia representado naquele colóquio sombrio, conquanto somente mais tarde eu notasse esse facto. Naquela hora, decerto, a minha atenção foi desviada desse aspecto por um outro fenómeno – um fenómeno tão fugaz que eu não poderia jurar acerca da sua realidade. Mal me dei conta de ter despertado, uma luz foi imediatamente apagada dentro do sepulcro escuro. Não creio que tenha ficado perplexo ou apavorado, mas sei que fui transformado profunda e permanentemente naquela noite. Logo que voltei a casa, dirigi-me imediatamente a uma arca carcomida no sótão, onde encontrei a chave que no dia seguinte removeu com facilidade o obstáculo contra o qual me bati em vão durante tanto tempo. 

Foi sob o brilho de um suave entardecer que entrei pela primeira vez na cripta da encosta abandonada. Como que enfeitiçado, o meu coração vibrava de um contentamento que não sei descrever. Assim que fechei a porta atrás de mim e desci os degraus encharcados, à luz de uma vela, era como se eu já soubesse o caminho, e embora a vela crepitasse na atmosfera sufocante do lugar, sentia-me singularmente em casa naquele ar mofado e sepulcral. Olhando em meu redor, avistei muitas lajes de mármore sustentando esquifes ou os restos de esquifes. Alguns estavam lacrados e intactos, mas outros tinham-se quase desfeito, deixando apenas as alças de prata e as placas isoladas no meio de alguns montículos singulares de pó. 

Numa das placas li o nome de Sir Geoffrey Hyde, o qual viera de Sussex em 1640 e morrera aqui uns poucos anos mais tarde. Numa alcova conspícua havia um caixão desocupado e bastante bem preservado, adornado apenas com um nome que me fez sorrir e estremecer. Um impulso inusitado levou-me a subir para a laje larga, a apagar a minha vela e a deitar-me dentro da caixa vazia. À luz cinzenta da aurora cambaleei para fora da cripta e tranquei a corrente da porta atrás de mim. Já não era mais um jovem, embora apenas vinte e um invernos houvessem esfriado a minha estrutura corpórea. Aldeões madrugadores que observaram a minha caminhada até casa olhavam-me de maneira estranha e espantavam-se com os sinais de obscena euforia que descobriam num homem cuja vida era conhecidamente solitária e austera. Não compareci perante os meus pais sem antes passar por um sono longo e restaurador. 

Desde então passei a ir ao sepulcro todas as noites, vendo, ouvindo e fazendo coisas que não devo jamais recordar. O meu modo de falar, sempre suscetível às influências do ambiente, foi a primeira coisa a sucumbir à mudança, e o arcaísmo de dicção que subitamente adquiri foi logo notado. Mais tarde, um atrevimento e uma audácia inesperados apareceram no meu comportamento, até que inconscientemente comecei a tomar os modos de um homem do mundo, não obstante o meu passado de reclusão. A minha língua, silenciosa por costume, deslizava com a graça fácil e volúvel de um Chesterfield ou com o cinismo ateu de um Rochester. Passei a exibir uma peculiar erudição, totalmente distinta do saber fantástico e monacal sobre o qual me esfalfara na minha juventude, bem como a cobrir as guardas dos meus livros com fáceis epigramas de improviso, os quais evocavam acentos de Gray, Prior e a engenhosidade vivaz dos augustanos. Certa manhã, durante o desjejum, cheguei à beira do desastre, ao declamar com acentos de efusão palpavelmente alcoólica de uma jovialidade setecentista, uma peça de jocosidade georgiana nunca registada em livro, que dizia mais ou menos o seguinte: 

Tragam aqui, meus rapazes, vossos canecos de cerveja.
E bebam ao dia de hoje, antes que já não mais seja.
Encham os vossos pratos de bifes, empilhando-os em montanha,
Pois só beber e comer é o que da vida se ganha.
Encham as vossas taças.
Pois a vida passa,
E depois ao rei e à amada não há quem um brinde faça.
O nariz de Anacreonte era vermelho, diz-se;
Mas o que é um nariz vermelho quando se é alegre e feliz?
Melhor ser vermelho agora – Deus me castigue! –
que estar Branco como um lírio ou morto antes de o ano acabar!
Vem, Betty, em festa,
Beije-me na testa;
Filha de estalajadeiro no inferno não há como esta!
Que o jovem Harry ainda esteja de pé causa-nos surpresa,
Logo há de perder a linha e entrar debaixo da mesa;
Mas encham bem as vossas taças, passem-nas de mão em mão,
Melhor embaixo da mesa do que debaixo do chão!
Que reine o festim,
Que bebam por mim:
Sob sete palmos de terra não se ri tão bem assim!
Que o diabo me carregue, se mal me agüento de pé e,
Com todos os demónios, se de mim ainda dou fé!
Aqui, patrão, mande Betty chamar um carro,
Que eu vou correr para casa, enquanto a minha esposa não chegou!
Alguém me sustente,
Antes que eu me sente:
Que enquanto em cima da terra estou feliz e contente.

Foi por esta época que adquiri o meu medo atual do fogo e dos temporais. Indiferente até então a tais coisas, tinha por eles agora um indizível horror e retirava-me para os recantos mais profundos da casa assim que nos céus se anunciassem quaisquer sinais de eletricidade. Um dos meus abrigos favoritos durante o dia era o porão arruinado da mansão que se incendiara, e, na imaginação, eu reconstituía a estrutura tal como teria sido nos seus primórdios. Em certa ocasião, deixei pasmado um aldeão ao conduzi-lo secretamente até um sub-porão de teto baixo, de cuja existência eu parecia saber a despeito do facto de ele ter ficado oculto e esquecido por muitas gerações. Por fim aconteceu o que eu há muito temia. Os meus pais, alarmados com a alteração de maneiras e aparência do seu único filho, começaram a exercer sobre os meus movimentos uma amável espionagem, a qual ameaçava resultar em desastre. Eu nada dissera acerca das minhas visitas ao túmulo, tendo guardado o meu propósito secreto com zelo religioso desde a infância, mas agora via-me forçado a ter cautela quando penetravan os labirintos da depressão brenhosa, não fosse estar a ser seguido às ocultas. 

Mantinha a minha chave para a cripta pendurada num cordão no pescoço, como um segredo que só eu conhecia. Nunca trouxe para fora do sepulcro qualquer das coisas que encontrei por entre aquelas paredes. Certa manhã, quando saí da tumba húmida e prendi as correntes do portal com pouca firmeza, lobriguei numa macega próxima a face horrorizada de um bisbilhoteiro. Por certo o fim estava próximo, pois o meu recanto fora descoberto e o objetivo das minhas jornadas noturnas fora revelado. O homem não me abordou, de modo que me apressei a chegar a casa, a fim de descobrir o que ele reportaria ao meu pai preocupado. Seriam as minhas incursões para além da porta trancada reveladas ao mundo? Imaginem com que espanto deleitoso ouvi o meu espião informar o meu pai, num cauteloso sussurro, que eu tinha passado a noite na clareira em frente ao sepulcro, os meus olhos baços de sono fixados na fenda da porta não de todo fechada! Que milagre ocorrera a ponto de iludir assim aquele observador? Convenci-me de que um agente sobrenatural me protegera. 



Na audácia que tal circunstância, enviada do céu, me dava, passei a ir, sem nenhuma dissimulação, à cripta, na confiança de que ninguém testemunharia a minha entrada. Durante uma semana provei à saciedade as alegrias daquele convívio sepulcral, o qual não descreverei, até que a coisa aconteceu e vi-me arrastado para este maldito lugar de tristeza e melancolia. Não devia ter-me aventurado a sair naquela noite, pois indícios de trovões relampejavam nas nuvens e uma fosforescência infernal subia do pântano ao fundo do vale. Também o chamado dos mortos estava diferente. Em vez da tumba na encosta, era o demónio que presidia o porão chamuscado no topo da elevação que me acenava com dedos invisíveis. Quando saí de um matagal intermediário para o plaino diante da ruína, descobri sob o luar nebuloso uma coisa pela qual sempre esperara vagamente. A mansão, destruída havia um século, mais uma vez se erguia no alto como uma visão arrebatadora, todas as janelas a brilhar com o esplendor de muitas velas. Pela longa estrada rodavam as carruagens da elite de Boston, enquanto a pé se aproximava um numeroso ajuntamento de janotas empoados, provenientes das mansões vizinhas. 

Misturei-me com essa multidão, conquanto estivesse certo de pertencer mais ao dos anfitriões que ao dos hóspedes. Para além do saguão havia música, gargalhadas e vinho em todas as mãos. Reconheci muitas faces, e tê-las-ia reconhecido melhor ainda se as visse ressequidas ou carcomidas pela morte e pela decomposição. No meio dessa turba selvagem e estouvada, eu era o mais selvagem e o mais debochado. Alegres blasfémias jorravam dos meus lábios, e em chocantes gracejos eu desprezava as leis de Deus ou da natureza. Súbito, o estrondo de um trovão, muito mais forte que a algazarra do imundo festim, rompeu o telhado e fez baixar um enorme silêncio sobre a companhia turbulenta. Línguas vermelhas de fogo e golfadas de calor ardente envolveram a casa, e os participantes, tomados pelo pavor de uma iminente calamidade que parecia transcender os limites da natureza desgovernada, fugiram aos gritos noite adentro. Somente eu permaneci, preso ao meu assento por um medo humilhante que nunca antes sentira. E então um segundo horror tomou conta de minha alma. Queimado vivo até às cinzas, o meu corpo disperso aos quatro ventos, eu nunca poderia jazer no túmulo dos Hydes! 

Não estava o meu caixão já preparado para mim? Não tinha eu o direito de descansar até a eternidade entre os descendentes de Sir Geoffrey Hyde? Ai! eu exigiria a minha herança de morte, mesmo que a minha alma vagasse através das eras à procura de uma nova habitação corpórea, que a representaria sobre aquela laje desocupada na alcova da cripta. Jervas Hyde não deveria jamais compartilhar do triste destino de Palinuro! Quando o fantasma da casa incendiada desapareceu, encontrei-me a gritar e a contorcer-me loucamente nos braços de dois homens, um dos quais era o espião que me seguira até ao sepulcro. A chuva caía torrencialmente, e sobre o horizonte, na direção sul, viam-se os clarões dos relâmpagos que há pouco tinham passado sobre as nossas cabeças. O meu pai, a face transtornada de pesar, estava ao lado, enquanto eu ordenava aos berros que me colocassem no túmulo, admoestando frequentemente os meus capturadores para me tratarem com a máxima consideração. 

Um círculo escuro sobre o piso do porão arruinado sugeria uma carga violenta dos céus, e era nesse local que um grupo de aldeões curiosos estava a examinar com lanternas uma caixa pequena de fabricação antiga, que a explosão do raio trouxera à luz.Cessando as minhas contorções fúteis e sem sentido, observei os espectadores enquanto olhavam o pequeno tesouro e obtive permissão para compartilhar as suas descobertas. A caixa, cujo fechose tinha partido com o golpe que a desenterrara, continha alguns papéis e objetos de valor, mas eu só tinha olhos para uma coisa. Tratava-se da miniatura em porcelana de um homem jovem usando uma peruca caprichosamente encaracolada, a qual portava as iniciais “J. H.” Quanto à face, a sua conformação era tal como se eu estivesse a olhar-me no espelho. No dia seguinte, trouxeram-me para este quarto que tem grades nas janelas, mas tenho sido informado sobre certas coisas por um homem velho, de mentalidade rude, por quem nutro simpatia desde a infância, o qual, tal como eu mesmo, também é amante de cemitérios. O que ousei relatar das minhas experiências na cripta trouxe-me apenas sorrisos de piedade. Meu pai, que me visita com frequência, assevera que em tempo algum atravessei o portal lacrado pelas correntes e jura que, quando o examinou, o cadeado enferrujado tem estado como sempre esteve ao longo de cinquenta anos. Chega mesmo a dizer que toda a comunidade sabia das minhas idas ao túmulo e que eu era muitas vezes vigiado enquanto dormia na clareira da encosta, os meus olhos semicerrados fixos na fenda que conduz ao interior. 

Contra essas afirmações não tenho nenhuma prova tangível, até porque a chave para o cadeado se perdeu na luta durante aquela noite de horrores. As coisas estranhas do passado que aprendi durante aqueles encontros noturnos com os mortos, ele as reputa como meros frutos de minha vida pregressa de omnívora perscrutação sobre volumes antigos da biblioteca da família. Não fosse pelo meu velho serviçal Hiram, eu hoje estaria convencido da minha loucura. Mas Hiram, leal até o fim, conservou a sua fé em mim e fez aquilo que me impele a trazer a público pelo menos uma parte da minha história. Há uma semana, ele quebrou o cadeado que prende a porta do túmulo na sua posição perpetuamente semicerrada e desceu com uma lanterna até às profundezas sombrias. Sobre uma laje, numa alcova, encontrou um velho mas ainda vazio caixão cuja inscrição deslustrada contém uma simples palavra: Jervas. Nesse caixão e nessa cripta é que me prometeram que serei enterrado.

H.P. Lovecraft

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O sócio do diabo



Era uma vez um lavrador muito pobre que não conseguia medrar no seu trabalho. Tanto mais se esforçava menos rendia a tarefa ao pobre homem. Vai um dia, desesperado, gritou: — Apareça quem me ajude mesmo que seja o próprio Diabo! — Aqui estou eu! respondeu o Demo. Ajustaram logo o contrato. 

O lavrador ganhou um belo terreno e o Diabo disse-lhe: — Planta o que quiseres que bem dará. Nascendo em baixo é meu e saindo em cima é teu… O homem plantou milho, trigo e centeio que nasceram como um louvar a Deus. Quando a plantação estava no pé de ser ceifada, veio o Diabo cobrar a parte. — Pode levar o que é seu… Foi ver o Diabo o que era dele e só encontrou raízes sem valor. Ficou furioso e desmanchou o pacto, propondo outro: ‘ — Vamos às avessas. O que sair por cima é meu e sendo de baixo é teu. 

O homem aceitou. Vendeu o milho, o trigo e o centeio por bom dinheiro e plantou batatas, cenouras e nabos que era um nunca acabar. No tempo da colheita voltou o diabo pela sua parte. — Leve o que está por cima que é o trato… O Diabo desta vez ficou desesperado com o logro. Desmanchou o negócio e propôs outro: — Faço-te rico como um conde e, no fim de vinte anos, ganho a tua alma. Está feito? — Está feito, com uma condição; escrevemos tudo num papel que fica no meu poder e que lhe darei ao fim dos vinte anos. Se passar um minuto depois da meia noite e você não tiver o contrato na mão, estarei livre. — Só aceito se o papel ficar na minha mão no fim do prazo! — Está feito o negócio…. 

Ficou o homem rico da noite para o dia, tratando-se do bom e do melhor, fazendo caridades. No fim dos vinte anos, dia por dia, foi falar com o padre da paróquia e  pediu-lhe uma escudela cheia de água benta. Dentro da escudela meteu o papel e esperou o Diabo. Quando este chegou, o homem disse: — O papel está ali, dentro daquela escudela, bem à vista. É só tirar. O Diabo meteu a mão para agarrar o papel e largou um uivo como se tivesse metido a pata nas brasas. Foi outra vez e gritou com a dor. Por mais que procurasse retirar o contrato, a água benta não deixava. Depois de muito esforço, o relógio bateu as doze badaladas. O homem, então, benzeu-se: — Vai-te para as areias gordas, que eu de ti estou livre! O Diabo estourou como um petardo e foi para o Inferno. O homem continuou rico e feliz, morrendo quando Deus o permitiu. 

Conto tradicional português
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