sexta-feira, 29 de junho de 2012

O Cão da Morte - Agatha Christie (1)



Foi por intermédio de William P. Ryan, correspondente de um jornal americano, que ouvi falar pela primeira vez no caso. Jantava com ele em Londres na véspera de seu regresso a Nova York e, por acaso, mencionei que na manhã seguinte pretendia ir a Folbridge.
Ele levantou os olhos e perguntou abruptamente:
- Folbridge, na Cornualha?
Ora, é raríssima a pessoa que sabe que existe Folbridge, na Cornualha. Todos pensam que se trata de Folbridge em Hampshire. Por isso o conhecimento de Ryan despertou a minha curiosidade.
-Sim - respondi. - Já esteve lá?
Ele limitou-se a praguejar. Depois perguntou se por acaso eu não conhecia uma casa chamada Trearne, que ficava por lá.
O meu interesse aumentou.
- Claro que conheço. Por sinal, é para lá que eu vou. É a casa da minha irmã.
-Incrível! - exclamou William P. Ryan. - Só faltava mais essa!
Sugeri que parasse de fazer comentários enigmáticos e se explicasse melhor.
- Bem - disse ele. - Para isso terei que começar por uma experiência que tive no início da guerra.
Suspirei. A história que conto aconteceu em 1921. A última coisa que podia me interessar era relembrar a guerra, graças a Deus já quase esquecida... Além do mais, eu sabia que William P. Ryan tinha o costume de ser incrivelmente prolixo quando se punha a descrever as suas experiências de combate.
Mas agora não havia como impedir.
- No princípio da guerra, como acho que sabe, encontrava-me na Bélgica a serviço do jornal... andando de um lado para o outro. Pois existia um lugarejo... vamos chamá-lo de X. A aldeia mais insignificante que já se viu, mas onde há um convento bastante grande. Freiras de branco, como é mesmo que elas se chamam? ... Sei lá o nome da ordem. Enfim, não vem ao caso. Pois esta cidadezinha ficava bem no caminho da avançada alemã. Os boches chegaram ...
Agitei-me incómodo no assento. William P. Ryan levantou a mão, para me tranquilizar.
- Não se assuste - disse. - Não é uma história de atrocidades germânicas. Podia ter sido, talvez, mas não foi. Para ser franco, aconteceu exactamente o contrário. Os boches atacaram o tal convento ... e quando entraram, a coisa voou toda pelos ares.
- Com a breca! - exclamei , espantado.
- Estranho, não é? Claro que a primeira coisa que eu diria é que os boches estavam a festejar a vitória e começaram a brincar com seus próprios explosivos. Mas parece que não havia nenhuma coisa deste tipo entre os armamentos que eles carregavam. Não era uma unidade encarregada do transporte de dinamite. Pois muito bem, eu então pergunto-lhe o que é que um bando de religiosas entende de explosivos? Que freiras estranhas, hein?
- De facto, é estranho - concordei.
- Fiquei interessado em ouvir a opinião dos camponeses sobre o assunto. Para eles, a explicação não podia ser mais simples. Tratava-se de um milagre moderno, sensacional, cem por cento eficaz. Segundo eles, uma das freiras havia criado uma espécie de fama ... uma vocação de santa ... entrava em transe e tinha visões. E disseram-me que foi ela a autora da proeza. Pediu que um raio fulminasse o invasor impiedoso ... e não há que negar que fulminou mesmo ... e tudo mais que se encontrava por perto. Milagre bem eficaz!
"Nunca consegui apurar a verdade ... não deu tempo. Mas naquela época surgiam milagres por tudo quanto é canto ... anjos em Mons, e assim por diante. Escrevi o artigo, adicionei uma boa dose de pieguice, explorei bem o lado religioso, e mandei para o jornal. Causou sucesso nos Estados Unidos. Era o tipo de coisa que gostavam de ler naquele tempo.
"Mas (não sei se você vai compreender isto) ao escrever o artigo, fiquei meio interessado. Achei que gostaria de saber o que tinha realmente acontecido. No próprio local não havia nada para se ver. Ainda restavam duas paredes de pé, numa delas existia uma grande marca de pólvora preta com a forma exacta de um enorme cão de caça. Os camponeses das imediações andavam mortos de medo da tal marca. Puseram-lhe o nome de Cão da Morte e não passavam por lá depois do anoitecer.
"A superstição é sempre uma coisa interessante. Resolvi procurar a freira autora da proeza. Parecia que continuava viva. Mas tinha vindo para a Inglaterra, junto com um grupo de outros refugiados. Dei-me ao trabalho de localizá-la. Descobri que havia ido para Trearne, em Folbridge, na Cornualha."
Confirmei com a cabeça.
- A minha irmã acolheu alguns refugiados belgas no início da guerra. Uns vinte, mais ou menos.
- Pois prometi-me que, quando tivesse tempo, iria procurar a tal freira. Queria que ela me contasse a sua própria versão da tragédia. Depois, andando sempre às voltas com uma coisa e outra, não pensei mais no assunto. A Cornualha, de qualquer forma, fica meio fora de mão. Para falar a verdade, tinha-me esquecido por completo dessa história, até que você, ao mencionar Folbridge há pouco, trouxe tudo de volta à minha memória.
- Vou perguntar à minha irmã - disse eu. - Ela deve ter ouvido falar no caso. Só que os belgas, naturalmente, já foram repatriados há muito tempo.
- Lógico. Mesmo assim, se s sua irmã souber de alguma coisa, eu gostaria muito que me comunicasse.
- Pode ficar descansado - prometi.
E a coisa ficou nesse pé.
Foi no dia seguinte à minha chegada a Trearne que me lembrei da história. Minha irmã e eu estávamos a tomar chá no terraço.
- Kitty - perguntei, - não havia uma freira entre os belgas que acolheu?
- Não quer dizer a irmã Marie Angelique, não?
- É possível que sim - respondi, precavido. - Fale-me sobre ela.
- Ah, meu caro! É uma criatura simplesmente fantástica. Ainda mora aqui, sabia?
- Quê? Aqui em casa?
- Não, não, na aldeia. O Dr. Rose ... lembra-se do Dr. Rose?
Sacudi a cabeça.
- Lembro-me de um velho de seus oitenta e três anos.
- O Dr. Laird? Não, esse já morreu. Faz pouco tempo que o Dr. Rose veio para cá. É bem moço e cheio de ideias avançadas. Tomou-se de um interesse enorme pela irmã Marie Angelique. Sabe, ela sofre de alucinações e não sei mais o quê, e pelo jeito é tremendamente interessante sob o ponto de vista médico. Coitada, não tinha para onde ir ... e realmente, na minha opinião, era bem amalucada ... só que de uma maneira comovente, se é que você me entende ... pois bem, como eu ia dizendo, ela não tinha para onde ir e o Dr. Rose, muito gentilmente, conseguiu que ela ficasse na aldeia. Creio que está a escrever uma monografia ou seja lá o que for que os médicos escrevem, a respeito dela.
Fez uma pausa e depois perguntou:
- Mas o que é que você sabe dela?
- Ouvi uma história bastante curiosa.
E contei exactamente o que Ryan tinha dito. Kitty ficou interessadíssima.
- Ela parece mesmo o tipo de pessoa que seria capaz de mandar você pelos ares ... entende o que eu quero dizer, não é?
- Acho - respondi, cada vez mais curioso, - que preciso mesmo falar com essa moça.
- Pois fale. Eu gostaria de saber a sua opinião sobre ela. Mas primeiro procure o Dr. Rose. Por que não vai até à aldeia depois do chá?
Aceitei a sugestão.

(continua)
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