Enoki Toshiyuki
Havia frio naquela noite de Inverno, no lugar de Cavez. Matilde ouvia o vento uivar lá fora e arrepiava-se, mais de medo que de frio. Nos lamentos sibilantes da tempestade em fúria, ela escutava sons como vozes humanas. Estremecia de terror. Tapava os ouvidos e encolhia-se na cadeira, deixando o bordado por continuar.
Arnaldo, o noivo de Matilde, ria-se da puerilidade da sua bem-amada:
— Querida, deixai de ser criança! De que tendes medo quando o vento sopra?
Ela estava pálida.
— Não sei! Parece-me escutar vozes do Além...
Ele riu.
— E que vos dizem essas vozes?
A jovem encolheu os ombros.
— Não as entendo. Falam todas ao mesmo tempo!
O riso tornou-se geral. O pai e a mãe de Matilde abanavam a cabeça, descontentes. Alguém insinuou, irónico:
— Cuidado, Matilde! Talvez sejam as almas do Purgatório!
A rapariga levou as mãos ao rosto. O medo tornava-a branca como cera. Então, Arnaldo deixou de rir. Chamou-a com ternura:
— Matilde, olhai para mim! Julgais-me insensato?
Ela murmurou:
— Não.
— Então, se vos digo que o vento sopra porque a tempestade é soberana nestes meses de Inverno, por que estais assim tão medrosa?
Ela murmurou, com um suspiro:
— Já sei que não vou dormir esta noite!
— E porquê? Receais que eu chegue a casa muito molhado da chuva e possa adoecer?
— Isso também me aflige. Mas...
— Mas o quê?
— Mas não é só isso. Eu oiço vozes quando o vento sopra!
Sorrindo para disfarçar a apreensão que a filha lhe causava, a mãe de Matilde aconselhou:
— Pois bem, minha filha. Tenta orar pelas almas do Purgatório quando essa obsessão te domina, e verás que tudo correrá bem!
Matilde agradeceu. O conselho da mãe ia ao encontro dos seus pensamentos. Pegou no bastidor para continuar o bordado. Porém, o vento voltou a uivar lá fora. Era um grito de alerta, que ficava repercutindo.
Matilde deixou cair o bordado. Olhou o noivo, gritando:
— Não, Arnaldo! Não saireis daqui!
Arnaldo pegou-lhe nas mãos, assustado.
— Que tendes, Matilde? Bem vedes que não poderei ficar aqui toda a noite!
Ela olhava-o aterrorizada.
— Mas não é isso! É a guerra! Prometei-me que não ireis para a guerra!
Os que assistiam a esta cena entreolharam-se. Sem dúvida, Matilde estava doente!
Tentando acalmá-la, Arnaldo provocou uma explicação:
— Querida! Porque falais em guerras, se a única que existe, lá fora, é a tempestade?
Matilde abanou a cabeça. Tinha os olhos rasos de lágrimas.
— Não, não é só a tempestade! Eu ouvi! Ouvi distintamente!
— E o que ouvistes?
— Que vós… vós ireis para a guerra... contra os Castelhanos... e... e vos perdereis...
— Eu?
Matilde chorava.
— Sim, vós! O nosso rei ganhará a batalha que vos perderá!
Arnaldo franziu as sobrancelhas, apreensivo.
— Querida! Algo vos preocupa e põe nervosa! Abri-vos comigo. Contai-me o que vos aflige, e juro que não me rirei de vós.
Matilde, olhos fixos no mosaico do chão, respirou fundo. Tinha olheiras roxas a circundar-lhe os olhos. A voz tremia-lhe:
— No vento, quando sopra forte, há vozes distantes que me falam. Umas têm frases de desespero, outras de consolação. Oiço chorar e rir. Hoje, porém, falaram-me de vós. Disseram-me que não vos deixasse partir para a guerra com Castela, porque vos perderíeis na batalha que o rei Afonso IV ganharia!
Arnaldo, sem se alterar, tomou as mãos geladas de Matilde.
— Querida! Porque acreditais nessas vozes, se não estamos agora em guerra?
Ela não respondeu. Sentia-se bem ao ouvir a voz do noivo a falar-lhe com ternura. O vento amainara. A tempestade seguia novos rumos. Então, o pai de Matilde lembrou, olhando Arnaldo:
— Creio que será prudente aproveitardes esta aberta para regressardes a casa. Matilde precisa descansar.
Ela agarrou fortemente as mãos do noivo.
— Não! Não me deixeis! Ninguém mais me compreende!
A mãe da jovem aproximou-se.
— Querida filha, vai descansar! Arnaldo voltará aqui amanhã!
Ajudada por Arnaldo, Matilde levantou-se do caldeirão. Parecia, de facto, doente. O noivo beijou-lhe a ponta dos dedos e despediu-se para sair. Mal o jovem cavaleiro saiu a porta, a donzela caiu desmaiada.
No dia seguinte, quando Arnaldo se dispunha a montar a cavalo para ir ver a noiva, um mensageiro chegou da corte. Trazia a notícia de que el-rei desejava quebrar pazes com Castela e fazer novas incursões em território fronteiriço. Noutra ocasião qualquer, o caso não o teria incomodado; mas nesse dia, impressionado ainda com o que se passara na véspera, nem teve coragem para se despedir de Matilde. Escreveu-lhe uma longa carta, renovando-lhe todas as suas juras de amor e pedindo-lhe perdão por não se avistar com ela mais uma vez antes de cumprir as ordens de el-rei. Procurou, contudo, o pai de Matilde e fez-lhe entrega de um anel de família, dizendo:
— Senhor, lembrai a vossa filha que desejo encontrá-la bem de saúde quando voltar, o que farei dentro de alguns meses. Isto não é propriamente uma guerra: é uma pequena incursão em terras vizinhas. Ajudai-a a saber esperar e incuti-lhe confiança!
O pai de Matilde sorriu.
— Ficai descansado. Tentarei velar por minha filha o melhor que puder. Mas tende prudência, porque desde este momento começo a sentir-me impressionado com o que se passa com Matilde!
Despediram-se como bons amigos. E Arnaldo partiu a caminho da corte, onde iria juntar-se ao exército real.
A luta era dura. A sorte nem sempre se mostrava risonha aos Portugueses. Ora avançavam, ora recuavam. Mas de súbito, numa arrancada forte, levaram os Castelhanos de vencida. A alegria foi imensa. O saque livre começou. Os soldados desataram a apoderar-se de todos os objectos, valiosos ou não, existentes nas casas. Arnaldo viu-se no meio dessa gente de apetites desenfreados. Num solar abandonado, Arnaldo descobriu um valiosíssimo cálice que pertencia à capela contígua. O desejo de se apoderar desse objecto e de um quadro de maravilhoso desenho tomou-o com desespero. E não resistiu à tentação. Levou consigo o cálice e o quadro e foi enterrá-los no campo, debaixo de uma rocha, para que ninguém lhes tocasse até que ele pudesse voltar à sua terra. Porém, nesse mesmo dia, numa pequena escaramuça de prisioneiros, Arnaldo foi ferido de morte!
A Primavera chegara. O vento já não zunia e Matilde, embora triste e desassossegada, esperava confiante a volta de Arnaldo. Mas nessa noite ela já não dormira bem. Como D. Isabel — a mãe de Matilde — confiasse ao esposo a sua apreensão pela saúde da filha, este respondeu:
— Não vos aflijais por isso. Creio que vamos ter mudança de tempo, e a nossa filha é muito sensível aos temporais.
Na verdade, um vento leve começava a levantar-se. Nos caminhos as folhas dançavam e erguiam-se nuvens de pó. Pálida, inquieta, Matilde foi sentar-se perto duma janela. Bem tentou sua mãe dissuadi-la de ficar ali. Mas ela insistiu, pedindo que a deixassem meditar. Receando qualquer recaída, a mãe de Matilde ficou no salão, fingindo-se interessada pelo bordado, mas na verdade observando a filha.
Lá fora, o vento soprava cada vez mais forte. Zunia impertinente. De súbito, Matilde deu um grito e caiu desmaiada.
William Morris - The wood beyond the world - 1894
Esteve assim largo tempo, sem sentidos, a jovem Matilde. Quando acordou, parecia mais calma. Não havia lágrimas nos seus olhos, mas a sua palidez impressionava. A mãe inclinou-se sobre ela, indagando:
— Minha filha, que tens?
Ela suspirou. A sua voz era débil.
— Senhora! Acabo de perder o meu noivo… e ele quase se perde também!
— Que dizes tu?
— Arnaldo morreu. Feriram-no de morte hoje mesmo!
— Quem to disse, se não veio aqui ninguém?
— As vozes que o vento trouxe!
— Filha, não exageres! Isso pode ter sido apenas impressão tua!
— E foi apenas impressão minha, a ida de Arnaldo para esta batalha?
A mãe de Matilde calou-se. A jovem fechou os olhos. Parecia extremamente cansada. D. Isabel pediu:
— Tenta dormir, minha filha. Talvez te faça bem.
Matilde não respondeu. Parecia dormitar. De repente sentou-se na cama, olhando a porta. Era quase rouca a sua voz:
— Arnaldo! Arnaldo! Que me quereis? Estais tão ferido!
Houve um pequeno silêncio. Ela tornou:
— Em que posso eu ajudar-vos?
Calou-se, como se houvesse um diálogo do qual só se entendesse a voz de Matilde. Ela continuou:
— Quereis então que vá a essa terra?
Novo silêncio.
— Pois irei, Arnaldo, irei! Onde quereis que coloque o cálice de ouro e o quadro?
Nova pausa. E Matilde fez nova pergunta:
— Entrego-os no solar ou na igreja?
— …
— Está bem. Irei à igreja.
— …
— Bem sei. Pedirei licença para me ausentar.
— …
— Oh, Arnaldo! Faço-vos tudo isso de boa vontade, se do meu esforço resultar para vós a salvação. Mas atendei ao meu sofrimento sem a vossa companhia, e pedi a Deus que me leve também!
— …
Matilde sorriu. Deitou-se. Fechou os olhos e disse para a mãe, que estava muda de espanto:
— Preciso dormir um bocadinho. Logo já acordarei bem. Amanhã iremos à corte, e depois necessito que o pai me acompanhe numa pequena viagem.
D. Isabel nem respondeu. Para ela, a filha delirava! Matilde fechou os olhos e adormeceu calmamente.
Foi grande a dificuldade da jovem para convencer os pais a acompanharem-na a terras de Castela. Porém, quando verificaram que ela, em determinado local, desenterrara com a ajuda de dois homens um preciosíssimo cálice de ouro e um quadro antigo, deixaram de ter dúvidas: Matilde era dotada de algo de estranho que lhe permitia comunicar com o Além. A ideia de que a perderiam em breve custou-lhes muito, mas até a isso se habituaram. Matilde não nascera para a Terra. Matilde, bela e boa como poucas jovens da sua idade, fora sempre diferente.
Depois de entregar o cálice e o quadro, em nome do cavaleiro português morto depois do combate, Matilde regressou a casa. Meteu-se na cama e pediu que a deixassem dormir. Desse sono tranquilo não voltou a acordar. E o povo de Cavez, durante muitos anos ainda, apontava a casa da donzela adormecida, com um misto de piedade e receio. E quando o vento soprava com fora, ficavam atentos às vozes estranhas que também julgavam ouvir...
MARQUES, Gentil, Lendas de Portugal ,Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 309-31