Conta a lenda que no castelo de Montemor-o-Novo estão enterradas duas arcas: uma cheia de ouro, a outra cheia de peste. Há muito, muito tempo atrás, no tempo dos Mouros, era alcaide de Montemor um viúvo austero, habituado à dura vida fronteiriça, onde eram mais frequentes os tempos de luta do que os momentos de repouso e prazer. Este homem tinha uma única filha que estranhamente amava, pois preferia mantê-la oculta de toda a gente, a ponto de nem aias nem amigas ter consigo.
A menina foi crescendo e o pai não se dava conta - ou talvez, quem sabe, preferisse não saber. Certo dia, um dos seus mail leais cavaleiros olhou-a tão moça e tão linda que se apaixonou. Mas como visse que o alcaide continuava a guardá-la menina, o jovem foi e disse-lhe:
- Senhor, vossa filha é já mulher! Breve virá alguém a levá-la!
- O quê?! Estás louco? Como podeis dizer tal coisa de uma criança?
- Olhai bem, senhor, olhai e vede onde esteve a criança...
- Cala-te!! Ninguém a levará daqui, jamais! Não tornes a dizer-me tais coisas, a menos que queiras ver a tua cabeça rolar das muralhas do castelo!
- Mas, senhor... - insistiu o cavaleiro com mil argumentos vivos.
Insistiu tanto, tanto, que o alcaide se enfureceu e o trancou nas masmorras: no dia seguinte, veria a sua própria cabeça rolar muralhas abaixo.
Foi privada, esta conversa, mas, como por vezes as paredes dos castelos têm ouvidos, toda a gente veio a saber o que se passara. Também a filha do alcaide teve conhecimento da brava discussão, que, sem querer nem saber, motivara e, condoída, decidiu interceder junto do pai. Este, porém, não se dignou a ouvi-la, nem resposta lhe deu, deixando-a especada e espantada porque nunca assim o vira.
Foi só então que se decidiu a descer às masmorras. Falaria com o condenado sem que ninguém o soubesse, nem mesmo o pai. Lá onde o sol nunca fazia visitas, o cavaleiro esperava condenado e sem medo o dia seguinte, passando a sua última noite que era a véspera da grande noite sem retorno. Pensava nas sem-razões daquela conversa com o alcaide. Afinal, a moça nunca olhara para si, nem mesmo adivinhara o grande amor que há tanto o abrasava. E contudo sorria, sorria sem pena e sem medo, dentro da noite.
Tão longe de tudo estava que quando ouviu rodar a chave na fechadura da cela se levantou para acompanhar sem receio o algoz que esperava. Atónito, porém, vislumbrara no contraluz um vulto inesperado de mulher: era ela, aquela filha do alcaide, a dos olhos abrasados de mulher.
Por segundos nem um nem outro souberam o que dizer-se. Ela acabou por dizer-lhe coitado! Ele acabou por responder-lhe desta grã coita de amor! Porque naquela hora tudo lhes era permitido e inconsequente, por ser a noite da véspera da grande noite silenciosa. Ouviram-se ambos e descobriram-se silenciados há muito. Ganhou o cavaleiro aquela batalha que já desistira de lutar, e a moça, essa, leu no seu livro próprio o que nunca soubera encontrar.
E fugiram. Fugiram com tantos cuidados que só na hora dos algozes o vieram a saber. E então foi o pânico geral: como dizer-lhe a ele, a esse alcaide irredutível, as ousadias dos amantes?! Só mesmo o carrasco que sabia cortar cabeças teve a coragem de ir-se a ele e contar-lhe.
Empalideceu o alcaide e esvaziaram-se-lhe os olhos de espanto. Pouco a pouco a fúria começou a subir-lhe o rosto, apoderou-se primeiro dos lábios, que tremeram, incharam depois as narinas, nublaram-se os olhos de ódio, chorou silencioso e agora eternamente só o seu cérebro enlouquecido. Por fim, quando tudo aquilo lhe chegou à voz, bradou:
- Vivos, quero-os vivos! Vou divertir-me finalmente! Ah, ah, ah! Vamos todos aprender a brincar! Ah, ah! Vai depressa, carrasco, vai depressa e traz-me vivos esses meninos que querem brincar comigo!
Partiu o carrasco levando consigo gargalhadas insanas rodopiando-lhe aos ouvidos. Ia com medo e com pena, e com inveja também: era bom fugir como aqueles dois que haviam fugido das suas masmorras e algemas pesadas. Mas ele, ele, como poderia fugir à sua masmorra de adaga, às suas algemas construídas de mil cabeças odiadas pelo seu senhor?! Ah, que inveja lhes tinha, a eles que se queriam inocentes até acharem culpas só de si mesmos!
Achou-os porque era fácil achá-los. Trouxe-os pela mão à presença do senhor de Montemor, que entretanto gastara todo o ódio, todo o medo amealhara no convencimento da solidão irremissível. Por isso, talvez, o terem-lhe encontrado uns olhos vazios e mortos.
- Aqui estão eles, senhor.
- Não vejo! Onde?! Sombras, sombras horríveis... Não os vejo... Só estas sombras, e tenho medo!
- Pai, pai... perdoa-me! Perdoa-me pelo que eu nunca diria! Perdoa-lhe pelo que ele sabia e te disse!
- Senhor, aqui estamos... Casámos... Dá-nos a tua bênção, que queremos viver na paz e contigo!
De repente o velho começou baixo a falar, sozinho:
- Casados?! Nunca! Pensam que eu conheço o perdão, que estou um pouco velho, um pouco louco!
E acrescentou, num tom em crescendo: - Casados? E querem-se felizes? Ah, ah, ah, amaldiçoados, isso sim! Vós e todos os vossos até ao fim dos tempos! Mas... aqui tendes a minha prenda, gozai-vos dela. Olhai bem, olhai e escolhei porque uma destas arcas está cheia de ouro e a outra... de peste! Escolhei, escolhei... ah, ah, ah!
Assustados, fugiram ambos quando o velho louco se chegou bem perto deles com o seu hálito de insânia. Nunca mais ninguém os viu e até hoje ainda ninguém ousou abrir as duas arcas nupciais enterradas no recinto do velho castelo, uma cheia de ouro, outra cheia de peste.
Fernanda Frazão,
Lendas de Portugal