Cérbero, Ilustração de Gustave Doré para a Divina Comédia de Dante
Se o Inferno é uma casa, a casa de Hades, é natural que um cão a guarde e também é natural que imaginem com esse cão é atroz. A Teogonia de Hesíodo atribui-lhe cinquenta cabeças; para maior comodidade das artes plásticas, este número foi rejeitado e as três cabeças do Cérbero são do domínio público. Virgílio menciona as suas três gargantas; Ovídio fala do seu triplo latido; Buder compara as três coroas da tiara do Papa, que é o porteiro do Céu, com as três cabeças do cão, que é o porteiro dos Infernos. Dante dá-lhe características humanas que agravam o seu temperamento infernal: pêlo ensebado e negro, mãos com unhas que desfazem, por entre a chuva, as almas dos réprobos. Morde, ladra e mostra os dentes.
Trazer o Cérbero à luz do dia foi o último trabalho de Hércules. Um escritor inglês do século XVIII, Zachary Grey, interpreta assim a aventura:
"Este Cão de Três Cabeças anuncia o passado, o presente e o futuro que, como quem diz, devoram todas as coisas. Que fosse vencido por Hércules prova que as Acções heróicas são vitoriosas sobre o Tempo e subsistem na Memória da Posteridade."
Segundo os textos mais antigos, o Cérbero saúda com o rabo (que é uma serpente) os que entram no Inferno e devora os que daí procuram sair. Uma tradição posterior fá-lo morder os que chegam; para o acalmar, era costume pôr no ataúde um bolo de mel.
Na mitologia escandinav, um cão ensanguentado, Garmn, guarda a casa dos mortos e lutará com os deuses, quando os lobos infernais devorarem a Lua e o Sol. Alguns atribuem-lhe quatro olhos e quatro olhos possuem também os cães de Yama, o deus bramânico da morte.
O bramanismo e o budismo oferecem infernos de cães que, à semelhança do Cérbero dantesco, são os carrascos das almas.
Jorge Luís Borges, O Livro dos Seres Imaginários