No Algarve, onde esta história tradicional corre oralmente, chamam mirra ao esqueleto.
Conta-se que um rapaz muito folgazão, vendo aproximar-se o seu aniversário, decidiu dar uma grande festa que durasse o dia inteiro. Algum tempo antes do banquete, passou pelas moradas de todos os amigos, convidando-os prazenteiramente a que fossem a sua casa jantar e cear no dia dos seus anos.
De volta a casa, fazendo caminho pelas portas do cemitério, encontrou ainda urm amigo e, depois de o convidar, deixou-se ficar mais urn bocado a conversa, muito satisfeito. De repente, deu com os olhos numa mirra, ainda revestida com pedaços de carne, e que estava pegada a uma parede. Na euforia em que se encontrava, virou-se para a mirra e, a brincar, disse-lhe:
- Se quiseres ir tambem ao banquete dos meus anos...
- Lá irei! - respondeu a mirra. O rapaz ficou espantado par ter ouvido resposta à sua brincadeira e, pensando ser partida do amigo, perguntou-lhe:
- 0 quê?! Disseste alguma coisa?
-Eu cá não!
Enfiado, o rapaz nao se atreveu a contar o que lhe parecera ouvir e, amedrontado, despediu-se do outro,
partindo a passos rápidos e largos. A caminho de casa passou pela sacristia e, com o susto que levava, tratou de confessar ao padre o acontecido.
- Ai, homem, 0 que foste tu fazer! Entao não sabes que com os mortos não se brinca?!
- E agora, senhor prior? ..
- Agora sujeitas-te, não tens outro remédio! Manda pôr na mesa um talher a contar com a mirra, ainda que seja só como satisfação do convite.
Cabisbaixo, o rapaz foi para casa e calou-se muito bem calado.
No dia da festa, mandou pôr na mesa os talheres e dispor os lugares, sem se esquecer da mirra. Todo o dia do aniversário foi de folguedos e danças. À noite, a hora da ceia, sentaram-se a comer e a beber, mas da mirra, nada.
Ao soar a primeira badalada da meia-noite, ainda estavam todos sentados a mesa, ouviu-se urn bater seco na aldraba da porta. O rapaz foi abrir e viu, esbaforido, a mirra. Esta entrou naturalmente, foi sentar-se no lugar vago e comeu até se empanturrar. Quando terminou, levantou-se e disse para o rapaz, à laia de agradecimento:
- Já que me deste o prazer de vir à tua festa de anos, convido-te eu agora para ires cear comigo, amanhã
por esta hora!
Dito isto, saiu porta fora, deixando atrás de si um rasto de frio que entrou na alma do aterrado aniversariante.
Finda a festa, o rapaz foi deitar-se, mas não conseguiu pregar olho. Cada vez que de cansaço os olhos se lhe fechavam, via à sua frente aquela mirra sorrindo um sorriso descarnado, convidando-o para cear. Assim que o galo cantou a madrugada que chegava, o homem saltou da cama e foi dali ao padre, contar o que se passara e pedir conselho.
- Nao tens mais remédio senão ires, porque, onde quer que te escondas, a mirra vai buscar-te de rastos! Mas, olha: vou emprestar-te a capa com que digo missa e tu veste-la logo à noite! ...
O rapaz sujeitou-se. Durante o dia inteiro esteve sentado ao sol, pois sentia dentro de si um pavor tão frio que nada conseguia aquecer-lhe a alma. Noite velha foi para o adro da igreja esperar, tremendo como varas verdes. Era meia-noite em pino, bateu o rapaz à porta do cemitério. A mirra veio abrir e levou-o consigo por entre campas e jazigos. Andaram, andaram até que pararam num local onde estavam duas covas abertas de fresco.
- Vês estas covas aqui? - perguntou a mirra.
- Vejo.
- Pois uma é minha e a outra seria para ti. 0 que te vale é vires vestido como Cristo, senão!... Agora, sempre te digo, não voltes a brincar com os mortos! ... Vê lá bem o que te espera! ...
Subitamente, fez-se escuro como breu em volta do rapaz. Os fogos-fátuos que todo o caminho o haviam
alumiado desapareceram, o céu deixou de ter estrelas, nenhum ruído lhe penetrava o cérebro: era como se
estivesse enterrado vivo. Mas, do mesmo modo que isto lhe acontecera, viu-se no adro da igreja, são e
salvo, como se tudo não tivesse passado de um terrível pesadelo. Sentia a cabeça arder de febre, mas, sem
saber muito bem como, chegou a casa e meteu-se na cama.
Muitos dias lhe durou aquela doença, com a qual nenhum médico atinava. Acabou por curar-se com o tempo, e nunca, nunca mais voltou a meter-se com os mortos.
Fernanda Frazão, Lendas Portuguesas, Amigos do Livro Editores