Figueiredo das Donas é uma pequena freguesia situada na região de S. Pedro do Sul. Ao seu nome anda ligada uma lenda muito antiga, anterior mesmo ao nascimento de Portugal, e uma obra poética das mais antigas da nossa literatura, a Canção do Figueiral, que se atribui a Goesto Ansures, o herói desta história.
Na época em que se passa esta história, havia na península inúmeros pequenos reinos, uns cristãos, outros mouros, que se guerreavam entre si. Mauregato, filho de D. Afonso, "o Católico", e de uma escrava moura, decidiu usurpar o trono a seu sobrinho Afonso, filho do rei D. Fruela. Com esse fim, aliou-se ao califa de Córdova, Abd-el-Raman, célebre pela ferocidade e valentia com que atacava os cristãos. E o califa aproveitou a ambição de Mauregato, impondo várias condições, das quais a mais humilhante e cruel foi o tributo de cem donzelas que o cristão lhe deveria fornecer, anualmente, com destino aos haréns muçulmanos.
Entretanto, Mauregato havia renunciado à religião de seu pai e tornara-se maometano, como o seu novo senhor. Depois de vender o filho de D. Fruela, em 783, Mauregato viu-se aclamado pela força das armas, mas ficou sendo conhecido como o homem mais desprezível e indigno do seu tempo.
Chamavam "caçadores" aos miseráveis que, disfarçados, estavam incumbidos de escolher e escoltar as donzelas - cinquenta nobres e cinquenta plebeias - destinadas ao tributo anual de Mauregato. Ora, os "caçadores" tinham já arrebatado de casa de seus pais cinco raparigas, quando chegaram ao castelo de D. Ramiro.
D. Ramiro tivera três filhos e deles só lhe restava D. Mécia, visto os moços lhe terem morrido na guerra. Mas D. Ramiro estava velho, e, apesar de representante altivo e orgulhoso de uma velha estirpe, não pôde, nem conseguiu, opor-se àquela infâmia. E lá viu partir a filha, entre os "caçadores", a caminho do harém do califa cordovês, sentindo crecer dentro de si o ódio pela sua própria impotência.
Num dia quente de Julho, ao passar perto de Viseu, a escolta parou num sítio a três léguas de distância. Era a hora do meio-dia e o calor tornava a caminhada insuportável. Os mouros fizeram uma paragem para seu repouso e dos animais. Na verdade, também não queriam arriscar a vida das raparigas, pois tinham de entregá-las no melhor estado de saúde, ou as suas cabeças não pesariam grande coisa na consciência de Mauregato. Havia por ali um casebre, nele enfiaram as seis donzelas, enquanto eles mesmos se deitaram a descansar, cá fora, à sombraa de um figueiral.
Dentro da cabana, as pobres raparigas choravam e lamentavam a sua sorte, lançando pragas contra Mauregato e os "caçadores". Os homens, debaixo das figueiras, riam alto dos lamentos das infelizes e, de vez em quando, faziam-lhes um relato do que as esperava, o que contribuía para aumentar lágrimas e lamentos. Pouco a pouco, os mouros, pela força do calor e do cansaço, deixaram-se adormecer à sombra das figueiras.
De repente, começou a ouvir-se ao longe um tropear surdo de cavalos, vindos na direcção da cabana. Era o altivo cavaleiro Goesto Ansures, que, acompanhado por alguns pajens, procurava causas para combater e ganhar.
Ouviu o cavaleiro os gemidos e prantos das donzelas e aproximou-se do casebre para oferecer a sua ajuda. Oljou pela pequena janela e descobriu espantado a filha de D. Ramiro, D. Mécia, por quem estava enamorado. Não conseguiu Goesto Ansures reter as lágrimas nos seus olhos, enquanto o coração se lhe enchia de dor e desespero. Prometeu salvá-la, prometeu salvá-las a todas.
Correu então para os mouros, que acordaram, sobressaltados pela gritaria e surpreendidos pelo ímpeto do cavaleiro. Desafiou-os, dizendo:
- Levantai-vos, cobardes! Isto não é uma donzela fraca e desprotegida, isto é o braço de um cavaleiro lutando pela sua dona! Por Santiago e Dona Mécia!
- Por Alá! - bradaram os mouros, levantando-se à pressa.
Arremeteu com fúria Goesto Ansures, acompanhado pelos pajens. Já alguns "caçadores" estavam por terra, uns trespassados pela lança, outros derrubados pelas patas do seu cavalo. Desembainhando o montante, espadeirada à direita, espadeirada à esquerda, jorrou sangue infiel. Um elmo mourisco aparou um rude golpemem falso de Goesto Ansures e a lâmina da sua espada voou em pedaços. Sem saber o que fazer, o cavaleiro suspendeu momentaneamente a sua fúria. Olhando em volta num relance, viu um tronco de figueira no chão, a seu lado. Pegou-lhe e, com ele, matou os últimos mouros que sobreviviam.
Cansado, meio cego de sangue e de ódio, o cavaleiro contemplou o campo de batalha, enquanto uma lassidão se apoderava do seu corpo, agora em sossego. Tudo era silêncio na natureza. Nem a cigarra deixava ouvir o seu canto monótono de uma nota só, silenciada pelo tinir das espadas e pelos gritos dos homens.
Goesto Ansures retomou em breve o ânimo. Abriu a porta do casebre e ajoelhou ante D. Mécia, beijando-lhe as mãos agradecido pela oportunidade que tivera de lhe ser útil. A donzela levantou-o do chão e pediu que a levasse a casa de seu pai. Montou D. Mécia o ginete de guerra do cavaleiro, e Goesto Ansures, pegando nas rédeas da montada, conduziu-a ao castelo de D. Ramiro.
O velho cavaleiro, louco de alegria, concedeu a mão da filha ao valente libertador. Mas, antes do enlace, juntou-se o povo aos guerreiros e, depois de muito batalhar, derrotaram o muçulmano, abolindo assim o ignóbil tributo de donzelas.
Em memória deste feito, nasceu em volta do miserável casebre uma pequena povoação à qual chamaram Figueiredo das Donas, ali para os lados de Viseu.
Fernanda Frazão, Lendas Portuguesas, Amigos do Livro Editores