Conta-se que nos terrenos onde hoje se situa a freguesia de Almaceda vivia, em tempos, D. Rodrigo, fidalgo rico e aventureiro, com sua irmã, D. Madalena. Os seus aborrecidos dias só eram animados pelos matinais passeios a cavalo. Quando o tédio apertava, pisgava-se para a corte.
Num desses passeios matinais, no início da primavera, D. Rodrigo, acompanhado por D. Madalena, estacou repentinamente o seu cavalo, olhando fixamente um ponto. D. Madalena parou também e indagou, curiosa:
- Que estás a ver?
D. Rodrigo, com o seu sorriso malandro.
- Ou estou a sonhar..., ou junto àquele arbusto está uma caveira!
- Que ideia! Respondeu a irmã, meio amedrontada.
D. Rodrigo aproveitou, para incutir mais medo.
- Anda, vamos ver de mais perto! Vamos cumprimentá-la.
- Devias ter mais respeito pelos mortos.
D. Rodrigo rindo:
- Mais respeito? Parámos para a cumprimentar e ainda pedes mais respeito?
- Não gosto dessas brincadeiras.
- Que medrosa, nem pareces minha irmã! Anda, é só uma caveira.
- Como veio aqui parar? disse D. Madalena.
D. Rodrigo, cada vez mais divertido com o receio da irmã, alvitra:
- Devia estar aborrecida no cemitério e veio dar um passeio, tal como nós.
- Cala-te, não suporto mais essa brincadeira. Vamos embora!
- Havemos de ir, mas não sem antes nos despedirmos da caveira.
- Não, vamo-nos!
D. Rodrigo, aproveita para irritar ainda mais a irmã.
- Antes de partirmos, vou convidá-la para o jantar.
Cada vez mais amedrontada e com lágrimas nos olhos:
- Que heresia, Rodrigo!
Dito isto, partiu velozmente, deixando o irmão rindo às gargalhadas.
Subitamente, D. Rodrigo ouve uma voz:
- Cavaleiro, não te desapontarei. Se queres jantar comigo, esta noite lá estarei.
D. Rodrigo, não vendo ninguém, estancou o sorriso, arrependendo-se da sua brincadeira ao mesmo tempo que se apoderava dele um certo temor. Esporeou o cavalo e partiu em direção ao mosteiro, a fim de contar aos frades o sucedido. Estes não o levaram muito a sério, deram-lhe uma cruz para o proteger do demónio e lá foi para o seu solar.
Ao ouvir o cavalo, D. Madalena foi ao seu encontro.
- Já estava preocupada. Demoraste tanto e eu aqui cheia de medo e de fome.
- Não te preocupes, já trouxe uma cruz que me deram os frades e tudo correrá bem.
-Mas...
- Deixa, se vier alguém para jantar connosco, recebê-lo-emos bem. Já mandei preparar a mesa
e avisei o José para não se alarmar com a estranha visita.
- Mas tu ... achas que vem alguém jantar connosco?
D. Rodrigo acenou afirmativamente, aumentando o medo da irmã.
- Vai para o teu quarto, eu fico sozinho para receber a visita.
- Não te deixo sozinho!
Dito isto, ouvem-se pancadas fortes na porta de entrada.
- A nossa visita chegou....
- Benze-te Rodrigo, para que Deus te proteja.
Uma voz cavernosa ecoa na casa.
- Diz ao teu amo que o convidado chegou.
Tentando disfarçar o seu medo, o fidalgo disse:
- Entre, estava à sua espera e está tudo preparado para o jantar.
D. Madalena quase desfaleceu, numa cadeira.
- Queira sentar-se ...
- Não vim para jantar, mas só para te levar comigo.
Pálido, D. Rodrigo balbuciou:
- Não compreendo ...
D. Madalena, em pranto:
- Meu Deus, protegei-nos.
- Quero que venhas comigo à minha morada.
- Onde mora?
- Perto da igreja. Vem, és meu convidado, pois gostaria de falar contigo.
A irmã tenta impedi-lo:
- Não vás, pode ser uma alma perdida.
- Por acaso, tens medo? Tu o aventureiro?
D. Rodrigo, coloca a capa e saem para o frio da noite. Avançam silenciosamente. Só se ouvem as aves noturnas e os seus passos. Este silêncio levou D. Rodrigo a refletir sobre a sua vida mundana, prometendo emendar-se.
Chegados ao portal da igreja, o fidalgo estancou e o vulto sem rosto:
- Entra comigo na igreja, está mesma na hora.
Ouvem-se as doze badaladas.
- Para onde vamos?
O vulto deu uma sonora gargalhada, empurrando o fidalgo para o interior da igreja.
- Vem conhecer o meu palácio. Eis a lousa onde moro. Vá, desce.
- Para quê?
-Tens medo?
D. Rodrigo aceita o desafio.
- Se mora na igreja não é uma alma penada.
- Aí é que tu e todos os outros se enganam. Pensavam que fui bom em vida, mas Deus conhecia
os meus erros e... condenou-me.
- Condenou-te!?
- Sim! Agora que troçaste de mim, quero que vejas os meus aposentos.
- Não, não me posso enterrar vivo, é contra os preceitos de Deus.
O vulto praguejou e disse:
- O que te vale é essa cruz ao peito, senão obrigava-te.
- Deus me valha!
O vulto acalmou-se e confessou:
- Tal como tu, fui aventureiro e leviano, desrespeitando as coisas sagradas. Quando vires um corpo sem vida, reza, pois a sua alma pode precisar das tuas orações. Que a tua alma ceda à caridade e compaixão para com os mortos. Que a tua alma ceda à verdade. As orações da tua irmã te salvaram. Vai, que a tua alma ceda ao orgulho, acolhendo o amor ao próximo. A voz calou-se e D. Rodrigo, meio desorientado, correu para sua casa, mas ouvindo repetidamente a expressão:
- Que a tua alma ceda\ Que a tua alma ceda\
Ao vê-lo a irmã, que tinha rezado continuamente, abraça-o, chorando.
- Graças a Deus voltaste!
A partir de então, era habitual ouvir D. Rodrigo dizer, sem razão aparente: Que a tua alma ceda\ Que a tua alma ceda\ . O povo da região, ao ouvir isto, começou a tratá-lo por Almaceda.
Passado algum tempo, D. Rodrigo restabeleceu-se, organizou a vida e distribuiu terras pelos pobres que pediam junto ao seu solar. Terão sido estas pessoas vindas de outras terras que começaram a identificar o local onde se fixaram como a Terra do Almaceda, que os vindouros passaram a denominar Almaceda em homenagem ao fidalgo que os tinha ajudado.
(Adaptado de Marques, Gentil, Lendas de Portugal, Círculo de Leitores, Lisboa, 1997)