sábado, 30 de junho de 2012

O Cão da Morte - Agatha Christie (2)



Encontrei o Dr. Rose em casa e apresentei-me. Parecia ser um rapaz simpático, mas havia qualquer coisa na sua personalidade que não me agradou muito. Era prepotente demais para deixar uma pessoa inteiramente à vontade.
Ficou bem atento quando mencionei a irmã Marie Angelique. Era evidente que estava profundamente interessado. Contei-lhe a história que tinha ouvido de Ryan.
- Ah! - exclamou, pensativo. - Isso explica uma porção de coisas.
Levantou rápido os olhos para mim e continuou.
- O caso, de facto, é incrivelmente interessante. Quando ela chegou aqui, era evidente que tinha sofrido algum choque muito grande. Encontrava-se também num estado de grave perturbação mental. Era dada a alucinações de uma natureza simplesmente desconcertante. A personalidade dela é absolutamente fora do comum. Talvez o senhor queira vir comigo para lhe fazermos uma visita. Vale a pena conversar com ela.
Concordei prontamente.
Dirigimo-nos a um pequeno chalé nos arredores da aldeia. Folbridge é um lugar muito pitoresco. Fica na foz do rio Fol, sobretudo na margem leste; a margem oeste é escarpada demais para ser povoada, o que não impede que existam algumas casas construídas temerariamente lá por aqueles penhascos. A do médico, por exemplo, estava encarrapitada bem na extremidade do penhasco do lado oeste. Dali se avistavam as grandes ondas batendo contra os rochedos negros.
O pequeno chalé para onde agora nos dirigíamos ficava afastado da costa, sem vista para o mar.
- A enfermeira local mora aqui - explicou o Dr. Rose.
- Eu providenciei para que a irmã Marie Angelique se hospedasse com ela. É melhor que permaneça sob cuidados especiais.
- Ela tem comportamento normal? - perguntei , curioso.
- Daqui a pouco o senhor verá com os seus próprios olhos - respondeu-me, sorrindo.
A enfermeira local, uma mulherzinha baixota e simpática, estava a sair de bicicleta quando chegámos.
- Boa tarde, enfermeira. Como vai a paciente? - gritou o médico.
- Como sempre, doutor. Sentada lá dentro com as mãos no colo e o espírito ausente. Muitas vezes não responde quando lhe falo, apesar de que deve levar-se em conta que ainda não entende bem o inglês.
Rose concordou com a cabeça e, enquanto a enfermeira saía a pedalar pela estrada afora, foi até à porta do chalé, bateu com força e entrou.
A irmã Marie Angelique estava reclinada numa preguiçosa perto da janela. Virou a cabeça para o nosso lado.
Tinha um rosto estranho - pálido, transparente, com olhos imensos. Pareciam conter uma infinidade de tragédias.
- Boa tarde, irmã - disse o médico, em francês.
- Boa tarde, M. le docteur.
- Permita-me apresentar-lhe um amigo, Mr. Anstruther.
Fiz uma mesura. Ela inclinou a cabeça com um leve sorriso.
- Como está hoje? - perguntou o médico, sentando-se a seu lado.
- Como sempre. - Houve uma pausa. Depois continuou. - Nada me parece real. São dias ... meses ... ou anos que passam? Eu mal sei. Só os meus sonhos me parecem reais.
- Ainda sonha muito, então?
- Sempre ... sempre ... e, o senhor compreende? ... os sonhos parecem mais reais do que a vida.
- Sonha com seu país ... com a Bélgica?
Ela sacudiu a cabeça.
- Não. Sonho com um país que nunca existiu ... nunca. Mas isso o senhor está cansado de saber, M. le docteur. Já lhe contei várias vezes. - Parou e depois disse bruscamente:
- Mas talvez este senhor também seja médico ... um especialista de doenças do cérebro?
- Não, não.
Rose quis tranquilizá-la, mas enquanto sorria, notei como os seus dentes caninos eram incrivelmente pontudos e me ocorreu que havia qualquer coisa de lobo nele.
Prosseguiu:
- Achei que talvez tivesse interesse em conversar com Mr. Anstruther. Ele conhece um pouco a Bélgica. Ultimamente recebeu notícias do seu convento.
Os olhos dela viraram-se para mim. Senti que avermelhei de leve.
- Não é nada, realmente - apressei-me a explicar. - Mas na outra noite estava a jantar com um amigo que me descreveu as paredes desmoronadas do convento.
- Quer dizer então que desmoronaram!
Era uma exclamação sufocada, dirigida mais a ela própria do que a nós mesmos.
Depois, olhando-me mais uma vez, perguntou hesitante:
- Diga-me monsieur, o seu amigo não descreveu como ... de que maneira ... desmoronaram?
- Foi devido a uma explosão - respondi, e acrescentei:
- Os camponeses têm medo de passar lá de noite.
- Por quê?
- Por causa de uma marca preta nos escombros de uma parede. São muito supersticiosos.
Ela curvou-se para a frente.
- Diga-me, monsieur ... depressa ... depressa ... diga-me! Como é esta marca?
- Tem a forma de um enorme cão de caça - respondi.
- Os camponeses puseram-lhe o nome de Cão da Morte.
- Ah! - exclamou num grito. - Então é verdade ... é verdade. Tudo o que eu me lembro é verdade. Não foi nenhum pesadelo. Isso aconteceu! Aconteceu!
- O que aconteceu irmã? - perguntou o médico em voz baixa.
Ela virou-se ansiosa, para ele.
- Eu lembrava-me. Lá nos degraus, eu lembrava-me. Lembrava-me de tudo. Usei o poder que tínhamos antigamente. Fiquei parada nos degraus do altar e pedi que não se aproximassem. Mandei que se fossem embora, em paz. Não quiseram ouvir, continuaram a vir apesar das minhas advertências. E então ... - Curvou-se para frente e fez um gesto estranho. - E então eu soltei o Cão da Morte sobre eles ...
Recostou-se de novo na cadeira, estremecendo da cabeça aos pés, os olhos fechados. O médico levantou-se, foi buscar um copo no armário, encheu de água até ao meio, verteu duas gotas de um frasquinho que tirou do bolso, e depois deu-lho.
- Beba isto - pediu, autoritário.
Ela obedeceu - maquinalmente, por assim dizer. Tinha o olhar distante, como se estivesse a contemplar uma visão que só ela podia vislumbrar.
- Mas então tudo é verdade - murmurou. - Tudo. A cidade dos círculos, as pessoas de cristal ... tudo. É tudo verdade.
- Parece que sim - concordou Rose.
Falava em voz baixa, apaziguadora, com o nítido propósito de estimular e não perturbar a associação de ideias da religiosa.
- Fale-me da cidade - pediu. - Da Cidade dos Círculos, não foi isso que você disse?
- Sim ... havia três círculos - respondeu maquinalmente, distraída. - O primeiro destinava-se aos eleitos, o segundo às sacerdotisas e o último aos sacerdotes.
- E no centro?
Ela tomou fôlego com veemência e a voz adquiriu um tom de indescritível pavor.
- A casa de Cristal ...
Ao pronunciar estas palavras, levantou a mão direita e traçou com o dedo um contorno qualquer sobre a testa.
O seu corpo pareceu mais rígido e, sempre de olhos fechados, oscilou um pouco. Depois, de repente, endireitou-se de um salto, como se tivesse acordado bruscamente.
- Que foi? - perguntou, confusa. - O que é que eu estava a falar?
- Não foi nada - respondeu Rose. - Você está cansada. Quer descansar. Nós já vamos embora.
- Então - disse Rose, já do lado de fora. - Qual foi a sua impressão?
Lançou-me um olhar penetrante enquanto caminhávamos.

(continua)
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