sábado, 30 de junho de 2012

O Cão da Morte - Agatha Christie (2)



Encontrei o Dr. Rose em casa e apresentei-me. Parecia ser um rapaz simpático, mas havia qualquer coisa na sua personalidade que não me agradou muito. Era prepotente demais para deixar uma pessoa inteiramente à vontade.
Ficou bem atento quando mencionei a irmã Marie Angelique. Era evidente que estava profundamente interessado. Contei-lhe a história que tinha ouvido de Ryan.
- Ah! - exclamou, pensativo. - Isso explica uma porção de coisas.
Levantou rápido os olhos para mim e continuou.
- O caso, de facto, é incrivelmente interessante. Quando ela chegou aqui, era evidente que tinha sofrido algum choque muito grande. Encontrava-se também num estado de grave perturbação mental. Era dada a alucinações de uma natureza simplesmente desconcertante. A personalidade dela é absolutamente fora do comum. Talvez o senhor queira vir comigo para lhe fazermos uma visita. Vale a pena conversar com ela.
Concordei prontamente.
Dirigimo-nos a um pequeno chalé nos arredores da aldeia. Folbridge é um lugar muito pitoresco. Fica na foz do rio Fol, sobretudo na margem leste; a margem oeste é escarpada demais para ser povoada, o que não impede que existam algumas casas construídas temerariamente lá por aqueles penhascos. A do médico, por exemplo, estava encarrapitada bem na extremidade do penhasco do lado oeste. Dali se avistavam as grandes ondas batendo contra os rochedos negros.
O pequeno chalé para onde agora nos dirigíamos ficava afastado da costa, sem vista para o mar.
- A enfermeira local mora aqui - explicou o Dr. Rose.
- Eu providenciei para que a irmã Marie Angelique se hospedasse com ela. É melhor que permaneça sob cuidados especiais.
- Ela tem comportamento normal? - perguntei , curioso.
- Daqui a pouco o senhor verá com os seus próprios olhos - respondeu-me, sorrindo.
A enfermeira local, uma mulherzinha baixota e simpática, estava a sair de bicicleta quando chegámos.
- Boa tarde, enfermeira. Como vai a paciente? - gritou o médico.
- Como sempre, doutor. Sentada lá dentro com as mãos no colo e o espírito ausente. Muitas vezes não responde quando lhe falo, apesar de que deve levar-se em conta que ainda não entende bem o inglês.
Rose concordou com a cabeça e, enquanto a enfermeira saía a pedalar pela estrada afora, foi até à porta do chalé, bateu com força e entrou.
A irmã Marie Angelique estava reclinada numa preguiçosa perto da janela. Virou a cabeça para o nosso lado.
Tinha um rosto estranho - pálido, transparente, com olhos imensos. Pareciam conter uma infinidade de tragédias.
- Boa tarde, irmã - disse o médico, em francês.
- Boa tarde, M. le docteur.
- Permita-me apresentar-lhe um amigo, Mr. Anstruther.
Fiz uma mesura. Ela inclinou a cabeça com um leve sorriso.
- Como está hoje? - perguntou o médico, sentando-se a seu lado.
- Como sempre. - Houve uma pausa. Depois continuou. - Nada me parece real. São dias ... meses ... ou anos que passam? Eu mal sei. Só os meus sonhos me parecem reais.
- Ainda sonha muito, então?
- Sempre ... sempre ... e, o senhor compreende? ... os sonhos parecem mais reais do que a vida.
- Sonha com seu país ... com a Bélgica?
Ela sacudiu a cabeça.
- Não. Sonho com um país que nunca existiu ... nunca. Mas isso o senhor está cansado de saber, M. le docteur. Já lhe contei várias vezes. - Parou e depois disse bruscamente:
- Mas talvez este senhor também seja médico ... um especialista de doenças do cérebro?
- Não, não.
Rose quis tranquilizá-la, mas enquanto sorria, notei como os seus dentes caninos eram incrivelmente pontudos e me ocorreu que havia qualquer coisa de lobo nele.
Prosseguiu:
- Achei que talvez tivesse interesse em conversar com Mr. Anstruther. Ele conhece um pouco a Bélgica. Ultimamente recebeu notícias do seu convento.
Os olhos dela viraram-se para mim. Senti que avermelhei de leve.
- Não é nada, realmente - apressei-me a explicar. - Mas na outra noite estava a jantar com um amigo que me descreveu as paredes desmoronadas do convento.
- Quer dizer então que desmoronaram!
Era uma exclamação sufocada, dirigida mais a ela própria do que a nós mesmos.
Depois, olhando-me mais uma vez, perguntou hesitante:
- Diga-me monsieur, o seu amigo não descreveu como ... de que maneira ... desmoronaram?
- Foi devido a uma explosão - respondi, e acrescentei:
- Os camponeses têm medo de passar lá de noite.
- Por quê?
- Por causa de uma marca preta nos escombros de uma parede. São muito supersticiosos.
Ela curvou-se para a frente.
- Diga-me, monsieur ... depressa ... depressa ... diga-me! Como é esta marca?
- Tem a forma de um enorme cão de caça - respondi.
- Os camponeses puseram-lhe o nome de Cão da Morte.
- Ah! - exclamou num grito. - Então é verdade ... é verdade. Tudo o que eu me lembro é verdade. Não foi nenhum pesadelo. Isso aconteceu! Aconteceu!
- O que aconteceu irmã? - perguntou o médico em voz baixa.
Ela virou-se ansiosa, para ele.
- Eu lembrava-me. Lá nos degraus, eu lembrava-me. Lembrava-me de tudo. Usei o poder que tínhamos antigamente. Fiquei parada nos degraus do altar e pedi que não se aproximassem. Mandei que se fossem embora, em paz. Não quiseram ouvir, continuaram a vir apesar das minhas advertências. E então ... - Curvou-se para frente e fez um gesto estranho. - E então eu soltei o Cão da Morte sobre eles ...
Recostou-se de novo na cadeira, estremecendo da cabeça aos pés, os olhos fechados. O médico levantou-se, foi buscar um copo no armário, encheu de água até ao meio, verteu duas gotas de um frasquinho que tirou do bolso, e depois deu-lho.
- Beba isto - pediu, autoritário.
Ela obedeceu - maquinalmente, por assim dizer. Tinha o olhar distante, como se estivesse a contemplar uma visão que só ela podia vislumbrar.
- Mas então tudo é verdade - murmurou. - Tudo. A cidade dos círculos, as pessoas de cristal ... tudo. É tudo verdade.
- Parece que sim - concordou Rose.
Falava em voz baixa, apaziguadora, com o nítido propósito de estimular e não perturbar a associação de ideias da religiosa.
- Fale-me da cidade - pediu. - Da Cidade dos Círculos, não foi isso que você disse?
- Sim ... havia três círculos - respondeu maquinalmente, distraída. - O primeiro destinava-se aos eleitos, o segundo às sacerdotisas e o último aos sacerdotes.
- E no centro?
Ela tomou fôlego com veemência e a voz adquiriu um tom de indescritível pavor.
- A casa de Cristal ...
Ao pronunciar estas palavras, levantou a mão direita e traçou com o dedo um contorno qualquer sobre a testa.
O seu corpo pareceu mais rígido e, sempre de olhos fechados, oscilou um pouco. Depois, de repente, endireitou-se de um salto, como se tivesse acordado bruscamente.
- Que foi? - perguntou, confusa. - O que é que eu estava a falar?
- Não foi nada - respondeu Rose. - Você está cansada. Quer descansar. Nós já vamos embora.
- Então - disse Rose, já do lado de fora. - Qual foi a sua impressão?
Lançou-me um olhar penetrante enquanto caminhávamos.

(continua)

sexta-feira, 29 de junho de 2012

O Cão da Morte - Agatha Christie (1)



Foi por intermédio de William P. Ryan, correspondente de um jornal americano, que ouvi falar pela primeira vez no caso. Jantava com ele em Londres na véspera de seu regresso a Nova York e, por acaso, mencionei que na manhã seguinte pretendia ir a Folbridge.
Ele levantou os olhos e perguntou abruptamente:
- Folbridge, na Cornualha?
Ora, é raríssima a pessoa que sabe que existe Folbridge, na Cornualha. Todos pensam que se trata de Folbridge em Hampshire. Por isso o conhecimento de Ryan despertou a minha curiosidade.
-Sim - respondi. - Já esteve lá?
Ele limitou-se a praguejar. Depois perguntou se por acaso eu não conhecia uma casa chamada Trearne, que ficava por lá.
O meu interesse aumentou.
- Claro que conheço. Por sinal, é para lá que eu vou. É a casa da minha irmã.
-Incrível! - exclamou William P. Ryan. - Só faltava mais essa!
Sugeri que parasse de fazer comentários enigmáticos e se explicasse melhor.
- Bem - disse ele. - Para isso terei que começar por uma experiência que tive no início da guerra.
Suspirei. A história que conto aconteceu em 1921. A última coisa que podia me interessar era relembrar a guerra, graças a Deus já quase esquecida... Além do mais, eu sabia que William P. Ryan tinha o costume de ser incrivelmente prolixo quando se punha a descrever as suas experiências de combate.
Mas agora não havia como impedir.
- No princípio da guerra, como acho que sabe, encontrava-me na Bélgica a serviço do jornal... andando de um lado para o outro. Pois existia um lugarejo... vamos chamá-lo de X. A aldeia mais insignificante que já se viu, mas onde há um convento bastante grande. Freiras de branco, como é mesmo que elas se chamam? ... Sei lá o nome da ordem. Enfim, não vem ao caso. Pois esta cidadezinha ficava bem no caminho da avançada alemã. Os boches chegaram ...
Agitei-me incómodo no assento. William P. Ryan levantou a mão, para me tranquilizar.
- Não se assuste - disse. - Não é uma história de atrocidades germânicas. Podia ter sido, talvez, mas não foi. Para ser franco, aconteceu exactamente o contrário. Os boches atacaram o tal convento ... e quando entraram, a coisa voou toda pelos ares.
- Com a breca! - exclamei , espantado.
- Estranho, não é? Claro que a primeira coisa que eu diria é que os boches estavam a festejar a vitória e começaram a brincar com seus próprios explosivos. Mas parece que não havia nenhuma coisa deste tipo entre os armamentos que eles carregavam. Não era uma unidade encarregada do transporte de dinamite. Pois muito bem, eu então pergunto-lhe o que é que um bando de religiosas entende de explosivos? Que freiras estranhas, hein?
- De facto, é estranho - concordei.
- Fiquei interessado em ouvir a opinião dos camponeses sobre o assunto. Para eles, a explicação não podia ser mais simples. Tratava-se de um milagre moderno, sensacional, cem por cento eficaz. Segundo eles, uma das freiras havia criado uma espécie de fama ... uma vocação de santa ... entrava em transe e tinha visões. E disseram-me que foi ela a autora da proeza. Pediu que um raio fulminasse o invasor impiedoso ... e não há que negar que fulminou mesmo ... e tudo mais que se encontrava por perto. Milagre bem eficaz!
"Nunca consegui apurar a verdade ... não deu tempo. Mas naquela época surgiam milagres por tudo quanto é canto ... anjos em Mons, e assim por diante. Escrevi o artigo, adicionei uma boa dose de pieguice, explorei bem o lado religioso, e mandei para o jornal. Causou sucesso nos Estados Unidos. Era o tipo de coisa que gostavam de ler naquele tempo.
"Mas (não sei se você vai compreender isto) ao escrever o artigo, fiquei meio interessado. Achei que gostaria de saber o que tinha realmente acontecido. No próprio local não havia nada para se ver. Ainda restavam duas paredes de pé, numa delas existia uma grande marca de pólvora preta com a forma exacta de um enorme cão de caça. Os camponeses das imediações andavam mortos de medo da tal marca. Puseram-lhe o nome de Cão da Morte e não passavam por lá depois do anoitecer.
"A superstição é sempre uma coisa interessante. Resolvi procurar a freira autora da proeza. Parecia que continuava viva. Mas tinha vindo para a Inglaterra, junto com um grupo de outros refugiados. Dei-me ao trabalho de localizá-la. Descobri que havia ido para Trearne, em Folbridge, na Cornualha."
Confirmei com a cabeça.
- A minha irmã acolheu alguns refugiados belgas no início da guerra. Uns vinte, mais ou menos.
- Pois prometi-me que, quando tivesse tempo, iria procurar a tal freira. Queria que ela me contasse a sua própria versão da tragédia. Depois, andando sempre às voltas com uma coisa e outra, não pensei mais no assunto. A Cornualha, de qualquer forma, fica meio fora de mão. Para falar a verdade, tinha-me esquecido por completo dessa história, até que você, ao mencionar Folbridge há pouco, trouxe tudo de volta à minha memória.
- Vou perguntar à minha irmã - disse eu. - Ela deve ter ouvido falar no caso. Só que os belgas, naturalmente, já foram repatriados há muito tempo.
- Lógico. Mesmo assim, se s sua irmã souber de alguma coisa, eu gostaria muito que me comunicasse.
- Pode ficar descansado - prometi.
E a coisa ficou nesse pé.
Foi no dia seguinte à minha chegada a Trearne que me lembrei da história. Minha irmã e eu estávamos a tomar chá no terraço.
- Kitty - perguntei, - não havia uma freira entre os belgas que acolheu?
- Não quer dizer a irmã Marie Angelique, não?
- É possível que sim - respondi, precavido. - Fale-me sobre ela.
- Ah, meu caro! É uma criatura simplesmente fantástica. Ainda mora aqui, sabia?
- Quê? Aqui em casa?
- Não, não, na aldeia. O Dr. Rose ... lembra-se do Dr. Rose?
Sacudi a cabeça.
- Lembro-me de um velho de seus oitenta e três anos.
- O Dr. Laird? Não, esse já morreu. Faz pouco tempo que o Dr. Rose veio para cá. É bem moço e cheio de ideias avançadas. Tomou-se de um interesse enorme pela irmã Marie Angelique. Sabe, ela sofre de alucinações e não sei mais o quê, e pelo jeito é tremendamente interessante sob o ponto de vista médico. Coitada, não tinha para onde ir ... e realmente, na minha opinião, era bem amalucada ... só que de uma maneira comovente, se é que você me entende ... pois bem, como eu ia dizendo, ela não tinha para onde ir e o Dr. Rose, muito gentilmente, conseguiu que ela ficasse na aldeia. Creio que está a escrever uma monografia ou seja lá o que for que os médicos escrevem, a respeito dela.
Fez uma pausa e depois perguntou:
- Mas o que é que você sabe dela?
- Ouvi uma história bastante curiosa.
E contei exactamente o que Ryan tinha dito. Kitty ficou interessadíssima.
- Ela parece mesmo o tipo de pessoa que seria capaz de mandar você pelos ares ... entende o que eu quero dizer, não é?
- Acho - respondi, cada vez mais curioso, - que preciso mesmo falar com essa moça.
- Pois fale. Eu gostaria de saber a sua opinião sobre ela. Mas primeiro procure o Dr. Rose. Por que não vai até à aldeia depois do chá?
Aceitei a sugestão.

(continua)

terça-feira, 5 de junho de 2012

A Missa das Sombras

Andre Garban 1930

Eis o que o sacristão da igreja de Santa Eulália, em Neuville-d'Aumont, me contou debaixo da latada do Cavalo-Branco, numa bela noite de verão, bebendo uma garrafa de velho vinho, à saúde de um morto muito abastado, que ele havia enterrado honrosamente naquela manhã mesma, sob um tecido cheio de belas lágrimas de prata.

"Meu finado e pobre pai (quem fala é o sacristão) foi, em vida, coveiro. Era de humor agradável, e isso sem dúvida decorria de sua profissão, porque se tem reparado que as pessoas que trabalham nos cemitérios possuem espírito jovial. A morte não os atemoriza absolutamente; jamais se preocupam com ela. Eu, que lhe estou falando, senhor, penetro num cemitério, à noite, tão serenamente quanto no caramanchão do Cavalo-Branco. E se, por acaso, encontro um espectro, não me inquieto absolutamente com isso, porque reflito que ele pode perfeitamente ir cuidar de seus negócios, da mesma forma que eu dos meus. Conheço os hábitos dos mortos e seu caráter. Sei a tal respeito coisas que os próprios sacerdotes ignoram. E o senhor ficaria surpreso se lhe contasse tudo que tenho visto. Mas, nem todas as verdades são próprias para serem contadas, e meu pai, que, todavia, gostava de narrar histórias, não revelou a vigésima parte do que sabia. Em compensação, repetia muitas vezes as mesmas narrativas e. ao que eu saiba, relatou bem umas cem vezes a aventura de Catarina Fontaine.

Catarina Fontaine era uma velha solteirona, que ele se lembrava de ter visto em criança. Não me surpreenderia se ainda houvesse na região, até, uns três velhos que ainda se recordem de ter ouvido falar a seu respeito, porque ela era muito conhecida e considerada, embora pobre. Morava numa esquina da Rua das Freiras, na torrezinha que o senhor ainda pode ver e que depende de um velho palacete arruinado, que dá para o jardim das Ursulinas. Há. nessa torrezinha, figuras e inscrições meio apagadas. 0 falecido pároco de Santa Eulália, Levasseur, dizia aí estar escrito, em latim, que "o amor é mais forte que a morte". 0 que se refere, acrescentava, ao amor divino.

Catarina Fontaine vivia sozinha nessa pequena habitação. Fazia rendas. 0 senhor sabe que as rendas de nossa região eram, antigamente, muito afamadas. Não se conheciam parentes ou amigos seus. Dizia-se que amara, aos dezoito anos, o jovem cavaleiro d'Aumont", com quem noivara secretamente. Mas as pessoas de bem não queriam acreditar absolutamente nisso e diziam tratar-se de uma história que fora imaginada, porque Catarina Fontaine lembrava mais uma dama, que uma operária, conservava sob seus cabelos brancos os vestígios de uma grande beleza, possuía um ar triste e se lhe podia ver, na mão, um desses anéis em que o ourives colocara duas mãozinhas unidas e que era costume outrora os noivos trocarem. 0 senhor saberá, daqui a pouco, o que isso significa.

Catarina Fontaine vivia santamente. Frequentava as igrejas e, todas as manhãs, qualquer que fosse o tempo, ia ouvir a missa de seis horas, em Santa Eulália.
Ora, uma noite de Dezembro, quando ela estava deitada em seu pequeno quarto, foi despertada pelo toque dos sinos; certa de estarem eles anunciando a primeira missa, a piedosa senhora vestiu-se e desceu à rua, onde a noite era tão fechada que se não viam absolutamente as casas; claridade alguma era perceptível, no céu negro. E reinava tamanho silêncio nessas trevas - que nem penso um cão ladrava ao longe - que a pessoa se sentia completamente separada do mundo dos vivos. Mas Catarina Fontaine, que conhecia cada uma das pedras onde pisava e que podia ir à igreja de olhos fechados, alcançou, sem dificuldade, a esquina da Rua das Freiras com a Rua da Paróquia, no ponto onde se ergue a casa de madeira que exibe uma árvore de Jessé, esculpida numa volumosa trave. Tendo alcançado esse local, ela viu que as portas da igreja estavam abertas e que deixavam sair uma grande claridade de círios. Continuou a caminhar e, tendo entrado, encontrou-se numa reunião, que enchia a igreja. Ela, porém, não reconhecia nenhum dos presentes, e estava surpresa ao ver - aquelas pessoas trajadas de veludo e de brocado, plumas no chapéu e trazendo espada, à maneira dos tempos de antanho. Havia senhoras que seguravam longas bolsas de castão de ouro e damas com toucados de nadas, presos com um pente em diadema. Cavaleiros de Luís davam a mão a essas senhoras, que escondiam atrás do leque um rosto pintado, do qual só era visível um sinal no canto dos olhos! E todos iam colocar-se em seu lugar, sem o menor ruído, e não se ouvia, enquanto andavam, nem o som dos passos no lajedo, nem o roçagar dos tecidos.

As naves laterais enchiam-se de multidão de jovens artesãos, de casaco pardo, calções de fustão e meias azuis, que seguravam pela cintura raparigas lindíssimas, rosadas, que conservavam os olhos baixos. E, junto às pias de água benta, camponesas de saia vermelha e corpinho de atar, sentavam-se no chão com a tranquilidade dos animais domésticos enquanto uns mocetões, de pé atrás delas, alavam os olhos, rodando o chapéu nos dedos. E todas aquelas fisionomias silenciosas pareciam imobilizadas para sempre, no mesmo pensamento, suave e triste. Ajoelhada em seu lugar costumeiro, Catarina Fontaine viu o sacerdote caminhar para o altar, precedido por dois acólitos. Não reconheceu nem o sacerdote, nem os ajudantes. Começou a missa. Era uma silenciosa missa, na qual não se ouvia absolutamente o som dos lábios que se agitavam, nem o rumor da sineta agitada inutilmente. Catarina Fontaine sentia-se sob o olhar e sob a influência de seu misterioso vizinho e, tendo olhado, sem quase volver reconheceu o jovem cavaleiro d'Aumont-Cléry, que a havia amado e que morrera fazia quarenta e cinco anos. Reconheceu-o por um sinalzinho que ele possuía sob a orelha esquerda e, principalmente, pelo sombreado dos longos cílios negros em seu rosto. Vestia o traje de caça, com botões dourados, que ele usara no dia em que tendo-a encontrado no bosque de São Bernardo, roubara-lhe um beijo. Conservava a Sua mocidade e seu bom aspecto. Seu sorriso ainda mostrava uma dentadura de jovem lobo. Catarina disse-lhe, baixinho:

- Senhor, vós que fostes meu amigo e a quem dei outrora o que uma jovem possui de mais precioso, Deus vos tenha em sua graça! Possa ele me inspirar, finalmente, o pesar pelo pecado que cometi convosco: porque é verdade que, de cabelos brancos e próxima da morte, ainda não me arrependo de vos ter amado. Mas, finado amigo, meu belo senhor, dizei-me, quem são essas pessoas trajadas à maneira antiga, que estão assistindo aqui a esta silenciosa missa.

0 cavaleiro d'Aumont-Cléry respondeu com uma voz mais débil que um sopro e, não obstante, mais clara que o cristal:
- Catarina, esses homens e essas mulheres são almas do purgatório, que ofenderam a Deus, pecando, a nosso exemplo, pelo amor das criaturas, mas que nem por isso estão desligadas de Deus, porque seu pecado foi, a exemplo do nosso, sem maldade. Enquanto separadas daqueles que amavam sobre a terra, elas se purificam no fogo do purgatório, padecem as dores da ausência, e para elas esse sofrimento é o mais cruel. São tão infelizes que um anjo do céu se apiedou de seu martírio de amor. Com o consentimento de Deus, reúne, todos os anos, durante uma hora da noite, o amigo à amiga em sua igreja paroquial, onde lhes é permitido assistir à missa das sombras, segurando-se pela mão. Esta é a verdade. Se me foi permitido ver-te aqui antes de tua morte, Catarina, tal coisa não se realizou sem a permissão de Deus.

La Charrette Fantôme, de Julien Duvivier, 1938

E Catarina Fontaine respondeu-lhe:
- Bem desejaria morrer para voltar a ser formosa como nos dias, meu finado senhor, em que te dava de beber na floresta.
Enquanto falavam assim, baixinho, um cónego muito idoso recolhia as esmolas e apresentava uma grande salva de cobre aos presentes, que ali deixavam cair sucessivamente moedas antigas, desde muito tempo fora de circulação: escudos de seis libras, florins, ducados, nobres com a rosa, e as moedas caíam em silêncio.

Quando a salva de cobre lhe foi apresentada, o cavaleiro depositou um luís, que não fez mais ruído que as outras moedas de ouro ou de prata.
Depois, o velho cónego parou em frente de Catarina Fontaine, que procurou em seu bolso, sem nele encontrar, um real. Então, não desejando recusar sua dádiva, tirou do dedo o anel que o cavaleiro lhe dera na véspera de sua morte, e atirou-o na concha de cobre. 0 anel de ouro, ao cair, ressoou como um pesado badalo de sino e, ao ruído atroador que ele fez, o cavaleiro, o cónego, o oficiante, os agitaram, as damas, os cavaleiros, toda a assistência desapareceu; os círios se apagaram e Catarina Fontaine ficou sozinha nas Trevas.

Tendo concluído assim sua narrativa, o sacristão bebeu um grande copo de vinho, ficou um instante a meditar e depois prosseguiu, nestes termos:
"Contei-lhe esta história exactamente como a ouvi muitas vezes de meu pai e creio que é verdadeira, porque corresponde a tudo o que tenho observado das maneiras e dos costumes peculiares dos defuntos.
"Convivi com os mortos, desde minha infância, e sei que eles costumam voltar a seus amores.
- É por isso que os mortos avarentos vagam, à noite, nas proximidades dos tesouros que eles esconderam durante a vida. Montam boa guarda à volta de seu ouro; mas os cuidados que eles tomam, longe de lhes servirem, prejudicam-nos, e não é raro descobrir-se dinheiro enterrado na terra, pesquisando-se o sítio frequentado por um fantasma. Da mesma forma, os finados maridos vêm atormentar, à noite, suas mulheres, casadas em segundas núpcias, e eu poderia indicar muitos que vigiaram melhor suas esposas depois de mortos do que o haviam feito em vida...

Esses são dignos de censura, porque, em boa justiça, os defuntos não deveriam ser ciumentos. Mas estou contando o que tenho observado. Por isso é que se deve ter cuidado quando se desposa uma viúva. Aliás, a história que lhe relatei tem sua comprovação no seguinte fato:
"Na manhã seguinte a essa noite extraordinária, Catarina Fontaine foi encontrada morta em seu quarto. E o padre de Santa Eulália encontrou, na salva de cobre que servia para o peditório, um anel de ouro, com duas mãos entrelaçadas. Aliás, não sou homem que conte histórias para fazer rir. E se pedíssemos outra garrafa de vinho?..."


Anatole France
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